1983
ortugal viu maminhas pela primeira vez em 1969. A primavera marcelista fez-se anunciar no Tivoli, com os seios imunes a tesouradas de Romy Schneider (A Piscina, Jacques Deray). Portugal, império dos sentados, viu O Império dos Sentidos em 1991 e o arcebispo de Braga confessou que aprendeu mais em 20 minutos do que em 60 anos. Entre essas duas datas marcantes da cultura portuguesa, houve uma outra: 1983. Em 1983, aconteceu o "caso Pato com Laranja". Na minha vaga memória (tinha dez anos), era uma vaga polémica por causa de um filme "erótico" que passou na TV. Mas não foi bem assim: na verdade, o filme foi interrompido devido a protestos de espectadores, e surgiu um embaraçoso apagão até ser reposta a legalidade (tinha graça se tivessem metido Danny Kaye, como já tinham feito a Duran Clemente em 75). O caso fez uma vítima: o Presidente do Conselho de Administração da RTP, João Palma-Ferreira, que se demitiu. Um escândalo, daqueles bem pategos.
Seria curioso revisitar essa polémica nos arquivos dos jornais da época, mas até na Internet se encontram ecos do caso, como no conhecidíssimo Internet Movie Database, que conta: "Quando o filme foi exibido em Portugal, causou um pequeno escândalo político por causa de alegadas cenas explícitas. O administrador da TV pública apareceu em antena a seguir ao filme para pedir desculpa pelos conteúdos mostrados, e isso tornou um incidente menor num assunto político sério. Hoje em dia, ninguém ligaria nenhuma à cena em que a actriz mostra o rabo nu".
Tinha, como disse, dez anos, e não vi as imagens na altura, mas lembro-me da polémica, lembro-me que toda a gente falava disso no dia seguinte, e sempre fiquei com a ideia de que se tratava de um filme "quente", precocemente programado. Agora, um editor nostálgico, que talvez tivesse dez anos em 1983, editou em DVD Pato com Laranja, e estudei finalmente o escandaloso objecto. Aqui vai uma sinopse: não é um objecto escandaloso.
L'anatra all'arancia (1975), de Luciano Salce, adapta uma peça revisteira sobre um casal que decide lidar de forma "moderna" com o adultério. Lisa (Monica Vitti) arranja um amante, Jean-Claude (John Richardson), e o marido de Lisa, Livio (Ugo Tognazzi), convida civilizadamente o amante da mulher e uma secretária, Patty (Barbara Bouchet), para um ambíguo convívio numa casa de campo. Salce diverte-se testando os limites do "casamento progressista": Livio está "calmo como um inglês", reagindo com grande fleuma ao adultério da mulher, e passa o tempo em conversas aparentemente amáveis ou a preparar cocktails, escondendo a sua raiva. Lisa diz que não quer apenas uma "aventura", quer mesmo divorciar-se ("Finalmente temos uma lei, temos de a aproveitar"). Jean-Claude, o amante aristocrata, é tão previsível como pode ser um Jean-Claude, amante aristocrata. E Patty, a secretária bimba, interpretada por uma ex-Bond girl, limita-se a mostrar as mamas e o rabo ("Che culo", exclama Tognazzi, a fazer de italiano).
Foi o culo de Barbara Bouchet que "chocou" muita gente, e que tramou o administrador da TV pública, que pediu desculpa pelas nádegas ao serão. Visto um quarto de século depois desse episódio, Pato com Laranja é ainda mais ridiculamente inócuo, uma daquelas comédias de costumes à italiana cheias de "malícia" mas ligeiríssimas e no fim de contas bastante conservadoras. Porque todo o filme joga com a falsa indiferença modernaça do casal, que testa o protocolo do adultério consentido e galante, mas que acaba violentamente tomado por uma "crise de possessivité" (em francês no original). E percebem que são inseparáveis. Desculpem se vos estraguei o fim.
Luciano Salce foi um actor e cineasta prolífico, e Pato com Laranja é como aquelas amáveis comédias de Vittorio De Sica, só que com alguma nudez e piadas (frouxas) sobre chicotes e outras malandrices. Livio e Lisa estão casados há dez anos, e nunca queremos que eles se separem: aquele adultério duplo é apenas uma prova de fidelidade, e uma oportunidade para joguinhos e sarcasmos que alimentam a saúde matrimonial. Ugo Tognazzi fez um Mastroianni dos pobrezinhos, numa cortesia raivosa que usava bem. E Monica Vitti (bianca, bionda, de vestidos decotados vaporosos e olhos verdes frios) lembra a paródia de Woody Allen aos filmes de Antonioni, com aqueles casais tão hirtos e sofisticados que só atingiam o orgasmo em sítios públicos. Erotismo? Nenhum. Perversidade? Leiam O Amante (1962), de Harold Pinter, para um bocadinho de perversidade conjugal. Graça? Só me ri uma vez: quando depois da queca a secretária diz a Tognazzi qualquer coisa como "um homem tão viril devia ser presidente da Fiat". Em termos cómicos, há, a dado passo, uma frase programática, que anuncia "um número estúpido e por isso adequado ao nosso público".
Nem graça, nem perversidade, nem erotismo. Malícia revisteira e um rabo à italiana. Por alguma razão o filme agora tem a classificação etária "para maiores de 12". Mas, em 1983, Portugal democrático há quase uma década, ainda havia telefonemas, apagões, desculpas e demissões. Éramos assim absurdos em 1983.