A Madeira pode ser independente?
Alberto João Jardim já comparou a Madeira a uma prostituta de luxo. "Se a querem, têm de pagar bem". A ameaça separatista é ciclicamente retomada em momentos de aflição financeira e de negociação orçamental ou constitucional. A "menina"
de Jardim pode declarar-se independente?
Por Tolentino de Nóbrega, no Funchal
a "A Madeira pode ser independente, sem o Estado português", disse há quase um ano o presidente do governo regional, Alberto João Jardim, numa das suas raras presenças no parlamento madeirense. "Isto já deu o que tinha a dar em termos de articulação com Lisboa", afirmou nesse discurso dedicado à discussão do actual programa de governo.É possível a Madeira ser independente, como ameaça Alberto João Jardim, sempre em momentos de crise ou de discussão orçamental? Olhámos para os argumentos e estudos produzidos ao longo dos anos e falámos com especialistas para testar a viabilidade do arquipélago como país independente.
Com a ameaça da independência, Jardim rejeita o princípio da unidade do Estado em termos territoriais. A independência da Madeira "é uma coisa que não faz sentido nenhum em termos jurídico-constitucionais", afirma o constitucionalista Jorge Reis Novais, professor da Faculdade de Direito de Lisboa. "Só com uma revolução e uma nova constituição. Só com uma revisão constitucional não é possível."
Mas mudam os tempos e os governos na República e mudam também as propostas de Alberto João Jardim para o arquipélago. Se recuarmos até 1974, quatro anos antes da chegada de Jardim à chefia do governo autónomo da região, Jardim opôs-se à ideia de independência e considerou-a mesmo disparatada. "Tentar separar a Madeira do todo nacional, para além de ridículo, constitui uma machadada grave na consciência do país. E significa abandonar esta minúscula porção de terra a ambições vorazes e estranhas, das quais não nos saberíamos, nem nos poderíamos, defender", escreveu no Jornal da Madeira a 30 de Outubro desse ano.
É com a chegada de Jardim ao poder, a 17 de Março de 1978, que pára a onda de atentados bombistas realizados pela Frente de Libertação da Madeira (Flama) desde o "Verão quente" de 1975, contra bens do Estado e automóveis de personalidades madeirenses conotadas com partidos de esquerda. Para o governante, como então disse aos membros do directório deste movimento separatista, era chegado o momento de apostar no reforço e consolidação do novo processo autonómico facultado pela nova Constituição da República.
Há mais de três décadas no poder, entre intermitentes declarações de portuguesismo, o chefe de uma das duas únicas regiões autónomas do país tem defendido a constituição da Madeira como estado federado ou mesmo independente e até sonha em transformar a ilha numa "Singapura no Atlântico", com o seu sistema fiscal especial capaz de atrair investimento externo.
Esta última proposta, defendeu-a em Maio de 2004, no encerramento do X Congresso regional do PSD-M. Na presença de Durão Barroso, a chantagem tinha também como destino Bruxelas, para onde rumaria, meses depois, o então presidente dos sociais-democratas. Se em 2008 a União Europeia não arranjasse medidas específicas de apoio às regiões ultraperiféricas como a Madeira, a região poderia ter de encontrar "estatutos diferentes, como existe em Inglaterra em relação às ilhas do Canal ou na Dinamarca quanto às ilhas Feroé", avisou.
Ameaça semelhante fez a Lisboa caso não vingasse o seu projecto de revisão constitucional para 2009 (que ainda não foi desencadeado pela Assembleia da República), exigindo o princípio de unidade diferenciada das autonomias, com graus e modelos diferentes para a Madeira e os Açores e com aumento de competências em termos legislativos. "Temos que nos ver livres dos que a tal obstarem", advertiu Jardim em Junho de 2007.
Mais claro, em Novembro de 2007, no Parlamento, foi o deputado social-democrata Gabriel Drumond, assumido membro da Flama e presidente da sua sucedânea Fórum da Autonomia da Madeira (Fama), criada por dirigentes do PSD e do CDS, incluindo o próprio presidente do governo regional, com o objectivo de combater o "colonialismo" de Lisboa. Se a próxima revisão constitucional "falhar, devemos declarar unilateralmente a independência na assembleia regional", disse então aquele deputado. E se falhar a culpa é do primeiro-ministro, José Sócrates, que "nos trata brutalmente, rouba-nos e nos trata à sapatada", e do Presidente da República, Cavaco Silva, que "também tem culpa nisto" porque não vetou a Lei das Finanças Regionais, que "sufoca o povo da Madeira".
De facto, só em parte Cavaco Silva (quando como primeiro-ministro tentou travar o despesismo madeirense, invocado para posicionar-se contra a regionalização no continente) e agora o chefe do governo José Sócrates (ao clarificar, no âmbito do saneamento das contas públicas, o relacionamento entre o Estado e as regiões autónomas na nova lei das finanças) resistiram à chantagem de Jardim, que tem beneficiado da complacência da generalidade dos titulares dos órgãos de soberania.
As sondagens
As duas mais recentes sondagens que abordam o tema da independência revelam que a Madeira deve ser o único território no mundo onde o apoio à independência dos habitantes locais é menor do que no país em geral.
No estudo de opinião feito pela Marktest para o DN e TSF, em Novembro de 2006, apenas no continente, a maioria dos portugueses participantes (59,2%) mostra-se contra uma possível independência da Madeira, que é admitida por 23,5 por cento, com uma esmagadora maioria (60,1%) a afirmar igualmente o seu apoio à decisão de Sócrates de reduzir os apoios a esta região.
Em Fevereiro de 2008, um estudo da Eurosondagem (para a RR, SIC e Expresso) revelou que, ao contrário do que políticos locais apregoam, os madeirenses não querem a independência, nem acreditam em discursos a apelar ao separatismo. À pergunta "A Madeira deve ser independente?", 72,2 por cento dos madeirenses inquiridos responderam "não", enquanto apenas 10 por cento deram resposta positiva.
Jardim desvalorizou, no seu tom peculiar, a sondagem em que os portugueses apoiam o corte de verbas à Madeira, por ter atingido, com a solidariedade nacional e europeia, um PIB superior à média portuguesa: "Há 60 por cento de tipos que querem ser proprietários da Madeira, mas que não querem gastar dinheiro com esta região. Há um nome feio que se chama a esses senhores..."
O referendo
A realização de um referendo nacional sobre a independência foi mesmo o que defendeu o jornalista madeirense Vicente Jorge Silva na sua passagem como deputado pela Assembleia da República, a propósito da revisão constitucional. Era uma forma de "ver, com toda a clareza, que o rei vai nu, duplamente nu" e que "o fantasma do separatismo agitado por ele [Jardim] poderia tornar-se um espantalho esfarrapado". O presidente do governo regional "sabe perfeitamente que a maioria esmagadora da população madeirense, confrontada com o momento da verdade, rejeitará o aventureirismo suicida de uma independência para a qual ele não terá respostas políticas, económicas e institucionais com qualquer viabilidade. Ele sabe que o referendo não lhe deixaria nenhuma margem de manobra para continuar a chantagear quem lhe fornece créditos a fundo perdido, utilizados para alimentar a corte e o sistema mafioso que imperam na região".
Mas não é apenas Jardim e quem o rodeia que sabem isso, adianta Vicente Jorge Silva. "Sabem-no - tinham obrigação de sabê-lo - todos os que, em Lisboa, se dispuseram a pagar os sucessivos resgates por ele exigidos em troca do modus vivendi ilusório, mas que, aparentemente, seria mais barato aos cofres do Estado e dos fundos comunitários do que os custos de uma prolongada situação de instabilidade e conflito com o caudilho da Madeira", comenta. O ex-director do PÚBLICO acusa ainda o Estado de abdicar das funções de assegurar as mais elementares regras de equidade e democraticidade neste arquipélago e denuncia "a dupla personalidade do pequeno caudilho madeirense", dividido entre "a manifestação mais militante de portugalidade e espírito patriótico" e "as ameaças mais ou menos ostensivas de vontade guerreira contra o colonialismo português".
Outro dos argumentos que Jardim usa constantemente é que a dívida deve ser vista numa perspectiva histórica e que o continente só está a pagar agora o que muito recebeu. Nomeou mesmo uma comissão em 2002, constituída por directores regionais e deputados do PSD, para investigar O Deve e o Haver - As Finanças Públicas e Privadas na História da Madeira. Proclamou-se contra os "500 anos de extorsão e roubo", num discurso a 21 de Agosto de 2008, em que também disse que não gostaria de ver a Madeira independente: "Sinto-me bem sendo português, tenho orgulho em ser português. (...) Mas se o povo madeirense um dia quiser a independência, o meu lugar é ao lado do povo madeirense", proclamou na cidade do Funchal.
Antecipando ao P2 a conclusão do estudo, que nunca chegou a ser apresentado, o seu coordenador, Alberto Vieira, investigador do Centro de Estudos de História do Atlântico (CEHA), sublinha que "o passado foi pautado por uma forte participação financeira da ilha nas finanças do Estado".
Perante esta "posição solidária" da Madeira no passado, o historiador argumenta que seria legítimo "esperar por idêntica atitude da mãe-pátria na presente recuperação do subdesenvolvimento a que nos sujeitaram". Hoje, diz Vieira, "somos nós que recorremos ao Velho Continente a reivindicar a cobrança dos 'empréstimos', mas no passado a coroa recorria às receitas madeirenses para colmatar o incessante défice das finanças públicas".
Na estimativa do historiador, nos "500 anos de domínio continental e de controlo absoluto das receitas fiscais produzidas na região", o Estado investiu na ilha "apenas um quarto da receita arrecadada na Madeira".
Auto-suficiente em 2006?
Mas, segundo as conclusões de Vieira, a Madeira poderia ter sido "auto-suficiente em relação o Estado português" em 2006, no final do III Quadro Comunitário de Apoio e com os investimentos em curso. Visão oposta têm outros economistas, como o deputado do PS Carlos Pereira, que, ao analisar a "frágil" economia regional, traça um cenário "pouco sustentável", resultado de políticas económicas que considera erradas e por dependências difíceis de ultrapassar. O PIB regional, empolado em 21% pelas imputações anómalas das actividades da Zona Franca, não é sinónimo de desenvolvimento humano, frisa. A Madeira, lembra ainda, tem o pior índice de conforto do país e o quarto resultado (em sete regiões) em termos de rendimento das famílias, de acordo com o inquérito às famílias do Instituto Nacional de Estatística (INE). É a região com maior índice de pobreza, segundo o último estudo do Banco de Portugal, e tem os piores resultados na educação, designadamente na taxa de analfabetismo, abandono escolar e ranking do secundário, apresentando também indicadores medíocres no quadro da adaptação a uma sociedade do conhecimento. Assim, "fica claro que PIB elevado não é sinónimo de desenvolvimento humano", explica o economista.
"Dificilmente a Madeira poderá ser independente", afirma o economista. E enumera os problemas: "Dependência excessiva" do turismo, o único sector que cria riqueza, peso excessivo do sector público na economia, um crescimento económico assente em obras públicas "de prioridade e utilidade duvidosa" e, ainda, dependência exagerada de recursos externos para promover o crescimento. Entre os obstáculos "inultrapassáveis", Carlos Pereira destaca a dependência de recursos externos e o défice externo, onde a taxa de cobertura das exportações é apenas de 15 por cento, enquanto nos Açores ronda os 45.
A dívida já ultrapassa os cinco mil milhões de euros (aproximadamente o preço do futuro aeroporto de Lisboa), muito acima do PIB, que ronda os 4,2 mil milhões, e é crescente em todas as suas componentes - directa, indirecta, do sector público empresarial e outros passivos financeiros efectuados por engenharias de vária ordem.
Se fosse independente, teria, para sustentar estes défices, de negociar com Bruxelas a manutenção dos apoios, diz o economista. Teria ainda de aumentar impostos para financiar o desenvolvimento, porque as receitas próprias hoje correspondem a cerca de 65 a 70 por cento das necessidades, acrescenta. E teria de deixar de beneficiar de um conjunto de apoios: saúde, segurança social, incluindo reformas não-contributivas e subsídio de desemprego, forças armadas e de segurança, justiça, subsídio de mobilidade, convergência tarifária da electricidade, entre outros. Estes encargos, estimados em 300 milhões de euros, não contabilizados na Lei das Finanças Regionais, são assumidos pelo Estado, que anualmente transfere do seu Orçamento para esta região mais de 200 milhões de euros, a título de custos de insularidade, e para as autarquias cerca de 70 milhões. Refira-se que, ao contrário das comunidades autónomas de Espanha, que arrecadam metade dos impostos cobrados no respectivo território e têm ainda de comparticipar nas despesas de soberania, as regiões portuguesas dos Açores e da Madeira, sem estes encargos, arrecadam a totalidade das receitas fiscais nelas geradas.
Feitas as contas, "a independência não é impossível, mas obrigaria a uma descida no nível de bem-estar dos madeirenses". Ou seja, "mantendo o mesmo bem-estar, é impossível sustentar um modelo de desenvolvimento em independência", conclui Pereira.
Dependência elevada
O Observatório do III Quadro Comunitário de Apoio divulgou em 2006 um relatório que confirma "o elevado grau da dependência do exterior" que ainda caracteriza a estrutura económica madeirense (na mesma altura a assembleia legislativa regional aprovava uma deliberação a encomendar um estudo para saber se a Madeira era ou não autoviável, um pedido de Jardim formulado no congresso do PSD-M).
Sob a coordenação do ex-ministro da Economia Augusto Mateus, a equipa de 17 técnicos incumbida de estudar o país no que toca à competitividade e à coesão económica, desde a década de 90 até ao início do segundo milénio, regista que esta "pequena região insular" depende, "quase exclusivamente, do transporte marítimo (e também aéreo) para as suas trocas comerciais e, mais especificamente, para o seu aprovisionamento em produtos de primeira necessidade".
Esta situação faz da Madeira, frisa o relatório, uma região "forçosamente influenciada por factores externos", que se revelam como "constrangimentos ao seu desenvolvimento". Este quadro de "fragilidades" é responsável por uma especialização produtiva "muito vulnerável e pouco diversificada", acrescenta o estudo, que enumera algumas dificuldades conhecidas ao nível dos sectores primário e secundário e enfatiza a importância do turismo, igualmente dependente do exterior.
O tecido empresarial é constituído por empresas de "muito pequena dimensão", que enfrentam dificuldades no domínio da competitividade, que geram fracos rendimentos e estão muito ligadas a actividades tradicionais. Além disso, a Madeira constitui um mercado cuja "capacidade produtiva não possui massa crítica suficiente para revelar alguma dimensão exportadora", optando por apostar essencialmente na produção de flores, banana, vinho, bordados e artefactos em vime.
Em termos gerais, a região debate-se com "insuficiências ao nível da qualificação dos recursos humanos", o que faz aumentar a distância com os níveis de rendimentos europeus. Revela uma estrutura global de níveis de habilitações da população residente e empregada "bastante desfavorável no espaço nacional e europeu", sendo o "défice de instrução e de formação" apontado como "um dos problemas mais graves". E ao nível da coesão, sublinha o estudo, aponta "assimetrias no desenvolvimento do território" que se traduzem em deficiências, debilidades e carências, problemas identificados como potenciais focos de exclusão.
Estes dados não impedem, porém, a região de ter registado, em 2001, o terceiro rendimento médio per capita mais elevado do país, logo a seguir a Lisboa e Vale do Tejo e ao Algarve, o que, inflacionado pela Zona Franca, fez perder 500 milhões de euros de fundos comunitários, por ter deixado de ser considerada região de Objectivo 1, em termos da convergência europeia. No período 2000-2006, a UE tinha concedido à Madeira 623 milhões de euros. Nesses seis anos, o Orçamento do Estado transferiu para esta região 1323 milhões, a título de custos de insularidade e do Fundo de Coesão, não incluindo apoios do PIDDAC; INGA, IFADAP; Instituto do Desporto e Segurança Social.
Faceta de ilhéu
A toda esta dependência económica, o historiador António Marques da Silva associa as razões históricas e culturais para relevar que a Madeira sempre foi o prolongamento de Portugal. O ex-director regional dos Assuntos Culturais, fundamentado nas obras de modernos investigadores madeirenses que incidem sobre os séculos XV e XVI, caracteriza o madeirense como "português com qualidades e defeitos, de individualidade própria, esforçado trabalhador, sempre aberto a novos mundos e detentor de uma cultura paralela à da Pátria que fica do outro lado do oceano". Esta faceta de ilhéu, conclui, "justifica a autonomia, mas de modo nenhum legitima o corte definitivo com o Portugal do continente, nem uma autonomia insensata sempre vibrantemente progressiva e sem fim, conforme a tola propaganda do partido dominante". Essa pretensa autonomia, adverte o historiador, "poderá desembocar numa injusta e mais que problemática situação de independência".