Antunes Filho vapt-vupt

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Fred Mesquita

Antunes Filho (São Paulo, 1929) viveu a vida toda numa cidade com 7,2 milhões de habitantes e é aí, no meio da multidão, que o encontramos agora, mesmo que a cidade que está sentada neste bar (esta cidade que vai acabar mal, embora as notícias da morte do Brasil sejam sempre bastante exageradas) seja o Rio de Janeiro de Nelson Rodrigues.

As luzes acendem-se e seríamos capazes de jurar que há 7,2 milhões de pessoas a entrar e a sair de "A Falecida Vapt-Vupt", 7,2 milhões de pessoas a jogar dominó, a apostar todo o dinheiro que alguma vez tiveram (e a perdê-lo) no Vasco (ganha o Fluminense), a correr para a casa de banho com dores de barriga e a ver a vida a andar para atrás, porque este lugar da Zona Norte (o subúrbio Aldeia Campista, onde Nelson Rodrigues passou a infância a almoçar café sem leite e mandioca) está destinado a dar errado.

Nisso, o Brasil da primeira década do século XXI continua igualzinho ao Brasil dos anos 50: "A desigualdade permanece: os que têm querem mais, os que não têm padecem mais", diz Antunes Filho ao Ípsilon.

Ele sabe porque esteve sempre lá: esta é a terceira vez ("ou a quarta, não sei mais") que faz "A Falecida". Mas é a primeira vez que a faz vapt-vupt, expressão brasileira para falar de uma coisa rápida.

Primeira parte de um vapt-vupt Antunes Filho que o Teatro Nacional S. João (TNSJ) coordenou com a organização cultural SESC São Paulo (é uma troca directa: em Junho, o TNSJ leva ao Brasil o "Turismo Infinito" de Ricardo Pais), "A Falecida Vapt-Vupt", em cena desde ontem, é o espectáculo em que uma das mais radicais e mais carismáticas figuras do teatro brasileiro faz a revolução, pondo em cima do texto de Nelson Rodrigues "os esbarrões e cotoveladas que se leva numa cidade tão populosa como São Paulo, os triliões de celulares com seus torpedos e musiquinhas personalizadas que tocam aqui, ali, a todo momento, o fax, a Internet (...), o ônibus que passa bloqueando a visão, a velha que sorri num cartaz na traseira do ônibus, satisfeita com seu novo cartão de crédito (...), alguém sendo assaltado que mal avistamos, as interrupções comerciais em meio à dramática novela da TV."

7,2 milhões de pessoas neste bar, dizíamos, 7,2 milhões de motivos de distracção para quem está de fora, como nós: é esse o espírito.

Golpe de estado

Por já ter ido lá noutras alturas - em 1965, em 1980, com o compacto "Nelson Rodrigues - O Eterno Retorno", e em 1989, quando montou "Paraíso Zona Norte", que incluía, além deste, outro texto de Nelson Rodrigues, "Os Sete Gatinhos" -, Antunes Filho está à vontade dentro de "A Falecida" para fazer um golpe de estado. "Já usei este texto várias vezes, por diferentes razões - desta vez usei-o para fazer uma experiência com a percepção visual do espectador, o que para mim é revolucionário. A maior revolução que pode haver no teatro é forçar o espectador a ter um ângulo de visão de 180 graus", explica.

Aqui, vemos coisas até de mais, e ele gosta disso: de ver que os espectadores vão para casa com milhares de coisas na cabeça e de os imaginar, horas mais tarde, a construir sequências a partir do que viram a entrar e a sair, vapt-vupt, neste bar. "O teatro é sempre clássico, porque tudo o que se faz no palco faz-se em função do centro, como na pintura clássica. O que eu quis fazer aqui foi descentrar - o nosso mundo já foi centrado, agora não é. É perturbado por mil influências, mil pressões, mil interferências, mil veículos, sobretudo tecnológicos. Há uma fragmentação total em palco e cada um faz o que quer com isso, cada um é DJ e monta o seu espectáculo", continua.

Nisso, 2009 não tem nada a ver com 1953: não havia tantas coisas a acontecer ao mesmo tempo nos anos 50, não demorávamos 45 minutos a fazer "zapping" com o comando da televisão nos anos 50, e ainda não se falava da vídeo-arte (uma linguagem que Antunes Filho reivindica para este espectáculo mas sem dar um único passo em direcção ao vídeo: "Uso os recursos do teatro para falar das bobagens da sociedade contemporânea") nos anos 50.

No resto, tem tudo a ver: tanto a falecida Zulmira (uma tuberculosa suburbana cuja única ambição é ter um enterro de luxo), como as mulheres peludas e os miúdos de dedo no nariz que andam por aqui continuam a fazer parte da paisagem brasileira. A falecida "são todos os infelizes, todos os desesperados, todos os que não tiveram uma oportunidade". Ela tem a sua: esse enterro que lhe pode salvar a vida, mesmo depois de morta. "É uma ideia muito louca, mas a pobreza leva as pessoas à loucura", argumenta Antunes Filho. Ou então leva-as ao bilhar, ao jogo do bicho, à cartomante: "A Zulmira pensa grande, o marido da Zulmira pensa pequeno. Ela tem aquela grande ilusão, ele fica no futebol, no Vasco campeão", acrescenta Lee Thalor, o Tuninho desta montagem.

O desespero endémico destas figuras, sublinha Antunes Filho, é muito do Rio de Janeiro: "O Nelson Rodrigues dizia que a maior solidão do mundo seria ir jantar com um paulista. 'A Falecida' é uma tragédia carioca porque o carioca pia e o paulista fica quieto".

Também é uma tragédia carioca porque as coisas que se dizem nesta peça também se dizem na rua: "Não há uma fala aqui que tenha sido inventada pelo Nelson Rodrigues. É tudo verdadeiro, tudo retirado da realidade da Zona Norte."

O método antuniano

Cinquenta e seis anos depois, o Brasil continua aqui - mesmo o Brasil que não acabou tão mal como esperávamos e para o qual toda a América, incluindo a do Norte, olha de baixo para cima. Antunes Filho acha que o jogo ainda vai a meio - é cedo para dizer se no fim o Brasil ganha. "Quero medir melhor isso depois da crise - sem dúvida que o Lula teve atitudes importantes, mas é prematuro fazer um julgamento."

De resto, para uma personalidade que atravessou todo o século XX brasileiro, os últimos anos não são assim tão eufóricos (a alegria continua a ser "de uma leviandade atroz", como escreveu Nelson Rodrigues em 1953). Os brasileiros passaram a ter acesso, e isso "é maravilhoso" mas não é suficiente: "Toda a gente tem informação, mas falta a formação. No teatro isso é muito óbvio: quase todo o teatro é evento. Importa que você passe o tempo lá e vá ao teatro em vez de ir ao zoológico, porque é mais elevado. Isso levou a um enfraquecimento da arte dramática, e por culpa também da televisão. O padrão cultural que temos é miseravelmente proporcionado pela TV. É moda hoje em dia falar em dramaturgia, mas eu não vejo dramaturgia na TV: vejo conversa. É uma coisa que eu nem quero discutir porque é muito ruim para a minha cabeça, eu passo mal."

As jornadas "Prêt-à-Porter", que Antunes Filho iniciou há dez anos no Centro de Pesquisa Teatral do SESC, são o braço armado da luta contra a hegemonia desse paradigma e fazem parte do programa SESC no TNSJ - de 19 a 23 de Maio, a sala de ensaios do S. João recebe uma colectânea de três peças ("Estrela da Manhã", "Bibelô de Estrada" e "Poente do Sol Nascente") que desvendam o ferozmente irrepetível método antuniano, responsável pela formação de actores como Ewa Wilma, Raul Cortez ou Paulo Autran.

Não é um método consensual, como o próprio Antunes Filho admitiu numa entrevista ao "Diário de S. Paulo" citada na "Enciclopédia Itaú Cultural do Teatro": "Se massacrar é obrigar o actor a estudar, a assumir responsabilidade do momento em que vive, é fazer do actor o senhor dentro do palco e dentro da história em que ele participa, então, nesse sentido, massacro o actor." A melhor maneira de iniciar um actor, acrescenta ao Ípsilon, é "mandá-lo varrer o palco: "O actor precisa de ter um conhecimento real das coisas para perceber que o teatro não é só estar no palco a receber aplausos."

Nestas pequenas peças de um minimalismo franciscano - sem cenografia, sem adereços, sem efeitos - que o modelo "Prêt-à-Porter" vem fabricando para pequenos elencos de dois actores, é possível recuperar o espírito pré-televisivo que Antunes Filho lamenta ter-se perdido. "O 'Prêt-à-Porter' é um projecto de formação mas também de resgate. Os actores vão para a televisão em busca de dinheiro, de comprar a panela de pressão - alguns já têm até apartamento em Miami. O teatro não tem absolutamente nada a ganhar com a televisão, só dinheiro."

Ele, que é "talvez a única [figura do teatro brasileiro] a integrar o restrito grupo internacional de encenadores que vêm renovando, obstinada e inspiradamente, a cena mundial", segundo o crítico Yan Michalski, está fora. Já não tem idade para vender a alma ao diabo.

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