Custódia de Belém
Durante os seis meses de restauro, a custódia de Belém, uma das obras mais importantes da ourivesaria portuguesa, esteve desmontada e dividida em dezenas de peças. Agora que Deus voltou a segurar a esfera armilar e os 12 apóstolos ocupam o lugar que Gil Vicente lhes deu, já não os podemos olhar de frente. Mas valeu a pena. A partir do dia 18 ela está de novo em exposição. Por Lucinda Canelas
a Deus tem oito centímetros e os apóstolos quatro (como convém, são mais pequenos do que o Pai). Lado a lado, numa caixa almofadada, embrulhados cuidadosamente, parecem peças de xadrez. Foi assim que estiveram durante meses, enquanto esperavam que chegasse a sua vez de passar pelas mãos experientes de Belmira Maduro, a técnica do Laboratório José de Figueiredo responsável pelo restauro da custódia manuelina de Belém, obra-prima da ourivesaria portuguesa e jóia da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.Agora que a tarefa que começou em Novembro chegou ao fim, Belmira Maduro pode finalmente descansar. Nas bancadas da sua sala de trabalho já não há dezenas de elementos e de minúsculas peças da custódia. Apesar de "aliviada", a técnica já lhes sente a falta: "Fico contente que tudo tenha corrido bem, mas vou ter saudades de a encontrar de manhã, ao chegar ao laboratório, à minha espera." Não hesita em dizer que foi "a peça mais complexa que restaurou até hoje", apesar de já lhe terem passado pelas mãos outras obras "muitíssimo difíceis e importantes", como o tríptico de Guimarães.
"A custódia é altamente simbólica, emblemática. É uma grande responsabilidade restaurar uma peça assim porque vai ser muito exposta, vai ter centenas de olhos em cima dela todos os dias. Mas poder devolvê-la às pessoas mais bonita é um privilégio, porque tenho a certeza de que já há muita gente com saudades dela."
O valor simbólico da custódia de Belém está directamente ligado ao contexto que conduziu à sua criação, desde a origem dos materiais, sobretudo o ouro, até ao seu destino, passando pelo ourives que a concebeu, pelo encomendador e pelo programa ideológico que a sustenta.
Criada em 1506 pelo ourives e dramaturgo Gil Vicente (durante muito tempo a sua autoria foi polémica), a custódia - objecto concebido para expor e guardar a hóstia consagrada - foi feita com ouro da costa oriental africana, resultante de um tributo de vassalagem (30 marcos de ouro) pago pelo régulo de Quíloa ao rei D. Manuel. Foi trazido por Vasco da Gama no regresso da sua segunda viagem à Índia, em 1503, e foram precisos três anos para que Gil Vicente, o autor do célebre Monólogo do Vaqueiro, texto fundador do teatro português, fizesse dele uma síntese arquitectónica que associa o elo entre o Velho e o Novo Testamento à exaltação do poder régio e dos Descobrimentos portugueses. Foi o próprio D. Manuel quem o encomendou ao seu mestre da balança (Gil Vicente usava este título referente ao ourives do rei) para o Mosteiro dos Jerónimos.
"A custódia de Belém é única no mundo", diz Leonor D'Orey, conservadora de Ourivesaria do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). "Única pela sua qualidade artística, pelo seu virtuosismo técnico, absolutamente inultrapassável, e pelo seu programa ideológico - é como se olhássemos para o sonho de D. Manuel, para o sonho dos Descobrimentos."
O restauro
Objecto de várias intervenções anteriores que chegaram a incluir, em 1921, a substituição do viril (cilindro em cristal em que a hóstia seria exposta), a custódia de Belém chegou a 2006, ano em que festejava cinco séculos, com graves problemas de conservação que ameaçavam a sua integridade. Os especialistas estavam sobretudo preocupados com o facto de o viril, elemento fundamental para a sustentação da peça, estar partido e de as figuras que a compõem - 12 apóstolos, Deus Pai, os anjos músicos, a Virgem Maria e a pomba simbolizando o Espírito Santo -, decoradas com ouro e esmalte policromado (parte dele a destacar-se), estarem cobertas por uma estranha e fina poeira. Era preciso intervir, é certo, mas como? E devia começar-se por onde?
Para ajudar a responder a estas e a dezenas de outras questões que se levantavam, Leonor D'Orey e Luísa Penalva, do MNAA, dupla responsável pela condução do processo de restauro da custódia, decidiram convocar duas especialistas em ourivesaria do Museu do Louvre, em Paris, Isabelle Biron e Beatrice Beillard, para participar no estudo preparatório, que começou em Abril de 2007.
"Os franceses são grandes especialistas em peças que combinam esmalte e ouro", diz Luísa Penalva, "porque têm peças anteriores à custódia, de 1400, e estão habituados a este tipo de problemas." O contributo de Biron e Beillard foi "precioso", acrescenta D'Orey, falando ainda com visível orgulho do privilégio que as duas francesas sentiram ao estudar a obra: "Disseram várias vezes que nunca tinham visto nada tão complexo nem tão completo do ponto de vista técnico."
Retirada da exposição, a peça foi levada para o Laboratório José de Figueiredo (que pertence ao Instituto dos Museus e da Conservação) para ser desmontada e fotografada. Foi aí que chegou às mão de Belmira Maduro e de mais duas colegas (Maria José Oliveira e Isabel Ribeiro), que se encarregaram de a separar "em dezenas e dezenas de elementos" - "é impossível dizer em quantas peças ficou desmontada", assegura Maduro - e de proceder a centenas de análises dos materiais.
Para esse processo foi fundamental a lupa adquirida com o contributo da Epal, o mecenas exclusivo do restauro, orçado em 100 mil euros. "A lupa permitiu-nos ver coisas que nunca tínhamos visto antes", acrescenta Penalva. "Coisas absolutamente reveladoras", como a diferença de técnicas usada de capa para capa em cada um dos apóstolos. "Este é um dos motivos pelos quais esta peça é de uma sofisticação extraordinária. O ourives recorre a diferentes técnicas nas figuras para garantir uma grande riqueza visual."
Estas figuras encontram-se na segunda e terceira partes da custódia, digamos assim, peça que se divide em três zonas distintas: a base, onde se encaixa a haste, decorada com esferas armilares, a divisa de D. Manuel; o corpo central, onde está o viril destinado à hóstia, rodeado pelos 12 apóstolos; e, finalmente, o duplo baldaquino do gótico final, marcado pela figura de Deus Pai sentado numa cadeira, segurando também ele uma esfera armilar, e pela pomba que simboliza o Espírito Santo.
"Tirar a figura de Deus da cadeira foi uma emoção", recorda Leonor D'Orey. "Pegar-lhe e pensar no que aquela peça já viveu, a que momentos assistiu, de onde vem o ouro de que é feita... Nunca deixa de me surpreender. Tudo aquilo é perfeito, nada é tosco, nem mesmo o que está sempre escondido pela montagem." Para a conservadora, que estudou exaustivamente a peça em meados da década de 90 a propósito do inventário da colecção de ourivesaria do MNAA, a "maior emoção" foi ver os apóstolos de frente: "Sempre estudei a custódia montada. Vê-la desconstruída, com os apóstolos fora do seu círculo habitual, deu-me oportunidade de os olhar nos olhos. Foi como se nos estivéssemos a conhecer." Luísa Penalva partilha esse entusiasmo e garante que hoje é capaz de os identificar pela cara, pelas mãos ou os pés.
A investigação
Agora que o processo de restauro está concluído, há ainda que tirar muitas conclusões em relação aos materiais - ouro (sete quilos, o peso da peça) e esmalte (seis coloridos diferentes, opacos e translúcidos) - e ver como o vidro se comporta (o viril foi substituído por um novo feito na Marinha Grande com o acompanhamento de dois professores da Universidade Nova de Lisboa).
"Quisemos fazer um restauro extremamente cuidadoso e equilibrado", explica Penalva. "Mas por vezes era difícil decidir onde parar porque, apesar de ser interessante em termos de investigação, não podemos desmontar uma peça como a custódia elemento a elemento só por curiosidade."
A maior dificuldade vai ser, a partir de agora, manter a custódia em condições ideais que previnam - ou pelo menos adiem o mais possível - o reaparecimento dos sais que formavam a fina poeira que cobria a peça. "Se as condições não forem óptimas, a custódia pode voltar ao aspecto que tinha antes do restauro", adverte Belmira Maduro.
Quando voltar a estar exposta no MNAA, no próximo dia 18, Dia Internacional dos Museus, a custódia será apresentada numa nova vitrina, com temperatura e humidade consideradas ideais para prevenir a sua degradação. É nessa mesma vitrina que, a partir de 9 de Julho e até 11 de Outubro, assumirá o seu lugar de destaque na exposição Encompassing The Globe: Portugal and the World in the 16th and 17th Centuries, que veio de Washington, onde reuniu mais de 300 peças de dezenas de museus espalhados por todo o mundo.
É precisamente em Outubro que o museu conta lançar um livro sobre o restauro da custódia que deverá incluir os resultados da investigação em curso, envolvendo historiadores de arte, especialistas em teatro e musicólogos. Para já, Luísa Penalva e Leonor D'Orey não querem adiantar pormenores. Garantem apenas que diz sobretudo respeito à questão vicentina - deverá ficar afastada a possibilidade de o autor ser outro que não Gil Vicente -, ao paradeiro da peça durante as Invasões Francesas e ao aparato cenográfico que a caracteriza. "Vamos ficar a conhecê-la muito melhor", conclui Penalva. "Vai haver novidades, certamente."