Judeus portugueses de A a Z

É "um produto limpo, acabado, com informação que interessa a toda a gente", diz o historiador António Borges Coelho sobre o primeiro Dicionário do Judaísmo Português. Mais de 500 páginas, com dezenas de entradas feitas por 65 especialistas. Destacamos uma por cada letra

a A ideia, surgida "há quase 10 anos", foi de Lúcia Liba Mucznik, que se juntou aos investigadores José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, Esther Mucznik e Elvira de Azevedo Mea na coordenação a quatro do primeiro "Dicionário do Judaísmo Português", agora publicado na Presença.Foram oito anos de trabalho, com a colaboração de 65 especialistas, entre os quais António Borges Coelho, uma referência de várias gerações.
"Os judeus e os cristãos-novos tiveram um peso muito importante na sociedade portuguesa, e esse peso foi quase sempre ignorado ou obscurecido", resume este historiador. A grande massa dos judeus converteu-se quando foi forçada a isso, e nessa massa estão "grandes mercadores portugueses do final do século XVI e princípio do século XVII, ligados aos familiares que tinham ido para Amesterdão, para Itália, para o Norte de África". Estes cristãos-novos, que "eram uma minoria, mas não tão pequena", tiveram, por exemplo, "um grande papel na construção do Brasil, especificamente no comércio dos escravos africanos", sintetiza Borges Coelho. Outros foram industriais, banqueiros, médicos, tiveram destaque nas artes e nas ciências.
Mas, como sublinha Lúcia Mucznik, o "Dicionário" não contempla apenas figuras, mas também rituais e cerimónias judaicas, lugares e acontecimentos relativos ao judaísmo português e factos pouco conhecidos do grande público.
O P2 destacou 24 referências de A a Z.
ANGOLA
Projectos de colonização - Em 1886, um Anahory (apelido emblemático entre os judeus de Lisboa) quis, sem sucesso, "colonizar Angola com famílias judaicas".
Em 1912, um judeu russo em Portugal, W. Terló, apoiado por Alfredo Bensaúde e por um movimento internacional, sugeriu entregar 45.000 quilómetros quadrados do planalto central angolano a judeus russos. O Parlamento português aprovou, mas nada aconteceu, devido à instabilidade política e ao "receio da constituição de um Estado independente".
Em 1938, o advogado J. Politis, relacionado com os Rothschild, propôs a Salazar que 250 mil judeus alemães e austríacos perseguidos se instalassem em Angola e ofereceu 230 milhões de dólares para desenvolver o país. Salazar recusou.

BENSAÚDE
Salomão, Elias e José são os três Bensaúde (antes Assiboni) que dão início à saga desta família radicada nos Açores. Os dois primeiros vieram do Norte de África, o último já nasceu no arquipélago. Os primos Salomão e Elias construíram um império comercial em várias rotas atlânticas e José foi industrial. Entre os descendentes, Vasco Bensaúde fez o lendário Hotel Terra Nostra nas Furnas, Alfredo Bensaúde fundou o Instituto Superior Técnico em Lisboa e Matilde Bensaúde tornou-se a primeira agrónoma portuguesa.

CABALA
É a "doutrina esotérica do judaísmo e o misticismo judaico em geral". Nascido em 1627, numa família cristã-nova de Celorico da Beira, Abraham (Miguel) Cardoso é o exemplo de um cabalista português. E o cristão-velho D. Francisco Manuel de Mello escreveu um Tratado da Ciência Cabala.

DIÁSPORABoa parte da história dos judeus portugueses faz-se na diáspora a partir da conversão forçada de 1497. É uma diáspora hispano-portuguesa, porque incluía os que tinham vindo expulsos de Espanha para Portugal, em 1492. Os grandes destinos são Norte de África, Império Otomano, Itália, Europa Ocidental e Novo Mundo.

ESTATUTO
DE LIMPEZA DE SANGUE
Depois da conversão forçada, passou a haver uma diferença entre cristãos-novos (judeus) e cristãos-velhos ("limpos" ou legítimos). E a Inquisição qualificava os cristãos-novos pela quantidade de sangue judeu que tinham. A partir de 1550, a limpeza de sangue tornou-se um requisito para várias coisas. Esta diferença entre cristãos-novos e cristãos-velhos só acabou em 1773.

FEZFoi "o grande centro de atracção dos judeus sefarditas de Marrocos", desde a expulsão de Espanha, em 1492. O mellah (bairro judaico) de Fez era "como uma grande vila" com "elevado número de sinagogas" e "cerca de 3000 vizinhos", segundo um cristão-novo do século XVI. Estava rodeado de uma muralha e tinha cadeia, cemitério e tribunal rabínico. Este mellah acolheu "parte avultada" dos portugueses cativos em Alcácer-Quibir.

GAMA, Gaspar da
Converteu-se ao cristianismo tomando o nome do padrinho, Vasco da Gama, com quem se cruzou na ilha de Angediva (a sul de Goa), em 1498. Depois foi com Pedro Álvares Cabral até ao Brasil e com Vasco da Gama na sua segunda viagem à Índia. Era intérprete de várias línguas, incluindo hebraico, árabe e caldeu.

HAMON, Moisés
Filho de um físico de Granada que se instalou no Império Otomano, Moisés Hamon (1490-1554) foi físico dos sultões Selim I e Suleiman, o Magnífico, e uma espécie de líder protector dos sefarditas.

INCUNÁBULOS HEBRAICOSAs obras impressas em fins do século XV chamam-se incunábulos, e, em Portugal, entre latim, português e castelhano, um terço dos textos foi impresso em hebraico. Predominam toras e talmudes.

JOÃO D'ESPERA EM DEUSO equivalente ao Judeu Errante. Carolina Michaëlis de Vasconcelos encontra vestígios desta lenda em Sá de Miranda ou Rodrigues Lobo, uma figura com traços comuns aos que aparecem na lenda de outros países: "a tristeza e a impossibilidade de rir, a incapacidade de estar quieto e de sossegar, e sobretudo a imortalidade".

KIPURÉ o dia da Penitência, em que os judeus não podem fazer qualquer trabalho, e devem evitar comer, beber, tomar banho e usar couro. Com a Pessah (Páscoa judaica), o Kipur "era uma das duas festas litúrgicas mais guardadas pelos cripto-judeus portugueses", ou seja, os que se mantiveram judeus em segredo. "Os processos da Inquisição referem frequentemente a guarda do dia de jejum, mesmo nos cárceres."

LINGUAGEM POPULAR
"Esta casa é tão alta, / forrada de pau espinho: / o homem que nela mora / é judeu e tem rabinho." Era assim uma quadra que os rapazes de Santo Tirso usavam para pedir no Natal. Outra de Santo Tirso: "Eu bem sei que tens um filho, / Não foi de nenhum judeu: / Foi de um rapaz galante, / De melhor nariz que o teu". Os versos citados nesta entrada, como exemplo dos preconceitos, vão de Trás-os-Montes à Beira Baixa.

MÚSICA JUDAICA Houve "grande actividade" de músicas e poetas judeus na Península Ibérica durante a Idade Média, mas, como "as melodias não foram transcritas", "só nos resta especular acerca do que foi a música judaica medieval". Pouco depois da conversão forçada, no teatro de Gil Vicente aparecem judeus a cantar. Os convertidos mantiveram um intercâmbio musical com os familiares na diáspora.

NASCI, Grácia
Nascida em Lisboa cerca de 1510, com o nome Beatriz de Luna, celebrizou-se como uma das mulheres fortes da Europa, com influência em reis, papas e sultões. Casou com o próprio tio materno, o banqueiro Francisco Mendes Benveniste, numa cerimónia católica e depois, secretamente, segundo o rito judaico. Fora de Portugal, viveu em Antuérpia, Veneza, Ferrara e Istambul, onde se assumiu judia com o nome Grácia Nasci. Obteve de Suleiman, o Magnífico, uma concessão de terras na Galileia. Deu origem a vários romances.

ORTA, Garcia deSabe-se que nasceu numa família cristã-nova em começo do século XVI e morreu em 1568. É difícil saber se se considerava judeu ou cristão. Viajou para a Índia, depois de ensinar em Lisboa, e fixou-se em Goa, onde foi médico e escreveu livros sobre os benefícios medicinais de plantas, minerais e animais. Camões, de quem era amigo, escreveu-lhe uma ode. A Inquisição desenterrou-lhe os ossos e queimou-os.

PEREIRA
RODRIGUES, Jacob
Filho de transmontanos cripto-judeus, perseguidos pela Inquisição, nasce em 1715 em Espanha, onde os pais se tinham refugiado, e faz vida em França, onde se torna "o primeiro reeducador de crianças surdas-mudas". Em Bordéus, assume o seu judaísmo, faz-se circuncidar, aprende hebraico e muda o nome.

QUETUBÁ
É um documento, assinado antes do casamento, em que se diz quanto dinheiro "o marido se obriga a entregar à mulher em caso de lhe dar carta de guete" (divórcio). De acordo com o Talmude, serve para proteger a mulher e dificultar o divórcio. Na Biblioteca Nacional e Universitária de Jerusalém, há exemplares vindos de Portugal.

REFUGIADOS NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
É um dos mais longos artigos deste dicionário. Dezenas de milhares de refugiados judeus passaram por Portugal durante a II Guerra, e entre 1940 e 1941 houve um pico dramático. Mau grado a ditadura de Salazar, que castigou o cônsul em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes, por ter dado milhares de vistos, Lisboa foi um "porto de abrigo" e a "despedida da Europa".

SILVA, António José da
Dito O Judeu. Nasceu no Rio de Janeiro, em 1705, e morreu nas fogueiras da Inquisição em 1739, depois de ser preso com a mulher, a mãe, a tia, o irmão e a cunhada enquanto celebravam um Yom Kipur. Celebrizou-se com óperas cómicas feitas no Teatro do Bairro Alto.

TUCACAS
Na Costa Norte da Venezuela, Tucacas era território espanhol quando, em 1693, algumas famílias judias portuguesas ali chegaram, vindas da ilha de Curaçau, uma possessão holandesa nas Caraíbas. Os espanhóis tentaram afastar os recém-chegados, mas a população defendeu-os, interessada no comércio que promoviam, de cacau, tabaco, prata, ouro e esmeraldas.

USQUE, Samuel de
Escreveu Consolação às Tribulações de Israel, impressa em 1553, em Ferrara. Será um cristão-novo nascido em Portugal e exilado em Antuérpia, onde serviu a família de Grácia Nasci, a quem dedica o livro.

VIEIRA, PADRE ANTÓNIO
Defendeu o regresso dos judeus expulsos, fez "a defesa dos cristãos-novos", tinha "concepções messiânicas consideradas de influência judaica" e esteve preso pela Inquisição de 1665 a 1667.

XIMENES, Família
São judeus com ramos em Espanha, em Portugal e no Brasil. O ramo mais prolixo misturava mercadores e aristocratas, e cruzou-se com as mais poderosas famílias de Antuérpia e de Itália, na Europa quinhentista. Em Portugal, destacaram-se no comércio da pimenta, no tráfico negreiro e na produção de açúcar a partir de São Tomé.

ZACUTO, Abraham
Bar Samuel
Viveu entre 1450 e 1522. Era astrónomo e matemático. Veio para Lisboa expulso de Espanha. "É possível que tenha sido autor das primeiras tábuas quadrienais do Sol para a navegação". Após a expulsão de Portugal, foi para o Norte de África e daí para Damasco.

Nota: Nestas 24 referências, só as citações entre aspas correspondem ao texto do "Dicionário". O resto é um resumo feito pelo P2 ANGOLA
Projectos de colonização - Em 1886, um Anahory (apelido emblemático entre os judeus de Lisboa) quis, sem sucesso, "colonizar Angola com famílias judaicas".
Em 1912, um judeu russo em Portugal, W. Terló, apoiado por Alfredo Bensaúde e por um movimento internacional, sugeriu entregar 45000 quilómetros quadrados do planalto central angolano a judeus russos. O parlamento português aprovou mas nada aconteceu, devido à instabilidade política e ao "receio da constituição de um Estado independente".
Em 1938, o advogado J. Politis, relacionado com os Rothschild, propôs a Salazar que 250 mil judeus alemães e austríacos perseguidos se instalassem em Angola e ofereceu 230 milhões de dólares para desenvolver o país. Salazar recusou.

BENSAÚDE
Salomão, Elias e José são os três Bensaúde (antes Assiboni) que dão início à saga desta família radicada nos Açores. Os dois primeiros vieram do Norte de África, o último já nasceu no arquipélago. Os primos Salomão e Elias construíram um império comercial em várias rotas atlânticas e José foi industrial. Entre os descendentes, Vasco Bensaúde fez o lendário Hotel Terra Nostra nas Furnas, Alfredo Bensaúde fundou o Instituto Superior Técnico em Lisboa e Matilde Bensaúde tornou-se a primeira agrónoma portuguesa.

CABALAÉ a "doutrina esotérica do judaísmo e o misticismo judaico em geral". Nascido em 1627, numa família cristã-nova de Celorico da Beira, Abraham (Miguel) Cardoso é o exemplo de um cabalista português. E o cristão-velho D. Francisco Manuel de Mello escreveu um "Tratado da Ciência Cabala".

DIÁSPORABoa parte da história dos judeus portugueses faz-se na diáspora a partir da conversão forçada de 1497. É uma diáspora hispano-portuguesa porque incluía os que tinham vindo expulsos de Espanha para Portugal, em 1492. Os grandes destinos são Norte de África, Império Otomano, Itália, Europa Ocidental e Novo Mundo.

ESTATUTO
DE LIMPEZA DE SANGUE
Depois da conversão forçada, passou a haver uma diferença entre cristãos-novos (judeus) e cristãos-velhos ("limpos" ou legítimos). E a Inquisição qualificava os cristãos-novos pela quantidade de sangue judeu que tinham. A partir de 1550 a limpeza de sangue tornou-se um requisito para várias coisas. Esta diferença entre cristãos-novos e cristãos-velhos só acabou em 1773.

FEZFoi "o grande centro de atracção dos judeus sefarditas de Marrocos", desde a expulsão de Espanha, em 1492. O "mellah" (bairro judaico) de Fez era " como uma grande vila" com "elevado número de sinagogas" e "cerca de 3000 vizinhos", segundo um cristão-novo do século XVI. Estava rodeado de uma muralha e tinha cadeia, cemitério e tribunal rabínico. Este "mellah" acolheu "parte avultada" dos portugueses cativos em Alcácer-Quibir.

GAMA, Gaspar da
Converteu-se ao cristianismo tomando o nome do padrinho, Vasco da Gama, com quem se cruzou na Ilha de Angediva (a Sul de Goa), em 1498. Depois foi com Pedro Álvares Cabral até ao Brasil e com Vasco da Gama na sua segunda viagem à Índia. Era intérprete de várias línguas, incluindo hebraico, árabe e caldeu.

HAMON, Moisés
Filho de um físico de Granada que se instalou no Império Otomano, Moisés Hamon (1490-1554) foi físico dos sultões Selim I e Suleiman, o Magnífico, e uma espécie de líder protector dos sefarditas.

INCUNÁBULOS HEBRAICOSAs obras impressas em fins do século XV chamam-se incunábulos, e, em Portugal, entre latim, português e castelhano, um terço dos textos foi impresso em hebraico. Predominam Toras e Talmudes.

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