Vítimas de violação não apresentam queixa porque não acreditam no sistema judicial
Apelidada como “preocupante” pelos especialistas, esta desconfiança das vítimas parece ter fundamento na realidade. No mesmo período, marcado por uma média de 109 acusações de violação por ano, a taxa de condenações caiu de 24 para 12 por cento dos casos.
Na procura das razões para este declínio, e no âmbito de um estudo comparativo entre 11 países da UE desenvolvido em parceria com a Child & Woman Abuse Studies, da Universidade Metropolitana de Londres, vários investigadores da delegação de Lisboa do Instituto Nacional de Medicina Legal passaram a pente fino 100 casos de violação, ocorridos entre 2004 e 2006, nas comarcas da área de Lisboa. Aqui, a taxa de condenações desceu ainda mais baixo, para os oito por cento, ou seja, “das mais baixas dos onze países participantes”, lê-se no relatório preliminar a que o PÚBLICO teve acesso.
Marlene Rodrigues, uma das autoras do levantamento, mostrou-se “muito surpreendida porque, apesar de tudo, o atendimento às vítimas de violência sexual tem vindo a melhorar, quer na parte das perícias médico-legais quer na parte das polícias”. E não hesitou em correlacionar a descrença das vítimas com a inoperacionalidade do sistema judicial. “Os processos são morosos, dolorosos, permanece sempre o princípio da dúvida a favor do réu e a fase de produção de prova pode demorar até 150 semanas”, apontou.
Efectivamente, o levantamento mostra que, em 44 por cento dos casos, a queixa foi arquivada já numa fase avançada do processo judicial, “sugerindo uma desconfiança no sistema de justiça e ou insegurança decorrente da falta de apoio e defesa”, denuncia o relatório, segundo o qual o arquivamento se deveu, em 39 por cento dos casos, à desistência das vítimas. “Desistem muitas vezes porque não têm qualquer feedback do que está a acontecer e são atiradas para uma grande solidão por períodos que chegam a ser de três anos”, precisa Marlene Rodrigues.
Natureza do crimePor estes dias em Portugal, a violação é um crime semipúblico, ou seja, depende da queixa da vítima para ser investigado. Na maior parte dos países analisados, o crime é de natureza pública, pelo que só os magistrados judiciais ou do Ministério Público podem travar o andamento do processo. Questionada sobre a pertinência da passagem do crime a público (à semelhança, aliás, do que aconteceu recentemente com a violência doméstica), a investigadora hesita: “Isso poderia colmatar as consequências da desistência, porque o processo seguiria independentemente disso, mas também acho que deve haver algum respeito pela vontade da vítima.” Para começar, “o sistema tem que começar a encarar a vítima como um cidadão de direito e não apenas como meio de produção de prova”. No mesmo sentido, o próprio relatório sugere que é preciso estudar até que ponto “a natureza semipública do crime constitui uma fonte de atrito”.
Do que Marlene Rodrigues não tem dúvidas é que a criação de um rape center para atendimento às vítimas de crimes sexuais pode ajudar a mudar o actual cenário. “Essa é uma das medidas em que Portugal está atrasado e seria muito importante que estas mulheres tivessem centralizada uma resposta que abarcasse o apoio judicial, social e psicológico”, preconizou, referindo casos em que as vítimas “sentem o seu corpo como o seu pior inimigo e chegam a lavar-se até produzirem ferimentos”.
Estes rape centers teriam que estar, por outro lado, preparados para lidar com o facto de, segundo a amostra analisada, 61 por cento dos agressores serem conhecidos das vítimas, casos em que “a violação é mais difícil de provar”.
Outro dado preocupante é que 44 por cento dos suspeitos de violação já tinham sido acusados por agressões anteriores, das quais 11 por cento de cariz sexual. Pior: um em cada cinco já tinha condenações anteriores. “Penso que isto acontece porque nestes casos, compatíveis com o estereótipo da violação, é mais fácil a recolha de provas.
Logo, “é preciso desenvolver estratégias para aumentar a taxa de sucesso da investigação criminal, sobretudo ao nível da recolha de provas, em casos que se afastam do estereótipo da violação”, sugere o próprio relatório preliminar.