Tratamentos para alterar orientação sexual não são uma coisa do passado
Há terapeutas que defendem que é possível ajudar um gay a deixar de o ser. E quem garanta que é grave e perigoso intervir. O presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos diz que compete ao clínico "avaliar a exequibilidade do pedido" de quem lhe entra pelo consultório
a Criou um site na Internet a que chamou SOS Ajuda Médica. Nele identifica-se como Daniel Marques, um homem na casa dos 30 anos com um "enorme desgosto por sofrer de tendências homossexuais não desejadas". E pede ajuda: quer ser heterossexual. Gostava, explica, de sujeitar-se a um tratamento, caso ele existisse, para pôr fim à sua "tristeza pessoal". Um comprimido, uma injecção, o que fosse, desde que fosse eficaz.Em Julho de 2006, lançou uma petição on-line. Pretendia recolher assinaturas de pessoas que tal como ele são gay mas querem ser homossexuais. "Juntos podemos sensibilizar a comunidade médica e científica, bem como os laboratórios farmacêuticos e as empresas de biotecnologia de modo a criarem um tratamento ou um método de reorientação sexual", escreve. O documento não recebeu mais de 20 assinaturas.
Não dá muitos pormenores sobre a sua identidade nos e-mails que troca com o P2. Diz que é empregado de escritório, que evita os contactos sociais, que vive em Lisboa e pouco mais. "O meu caso provavelmente corresponde a uma anomalia estatística", desabafa. "A maior parte dos GLBT [gay, lésbicas, bissexuais e transexuais] apenas quer ser aceite como é. Eventualmente, acabam por atingir um ponto de harmonia e de auto-aceitação, digo eu, e a vida continua." Com ele é diferente. "A minha esperança está toda centrada na cura."
"Cura" é, no entanto, uma palavra que há muito deixou de ser usada nestes casos. Porque há muito que a homossexualidade deixou de ser vista como doença. A Associação Americana de Psiquiatria recomenda mesmo aos médicos que se abstenham de tentar mudar a orientação sexual dos indivíduos.
Ainda assim, Adriano Vaz Serra, psiquiatra, presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, conta que já teve dois pedidos semelhantes ao de Daniel. E acredita que, nalgumas circunstâncias, se a pessoa demonstrar grande vontade, é possível, através da terapia cognitiva comportamental, mudar a orientação sexual de alguém. "Num desses casos, a pessoa conseguiu mudar."
O "tratamento da homossexualidade" voltou a ser notícia recentemente, no Reino Unido, a propósito de um inquérito de um grupo de investigadores que, causando alguma surpresa, revelou que 17 por cento profissionais de saúde mental assumiu já ter tentado "reorientar" lésbicas, gays e bissexuais.
O P2 pediu a opinião de João Marques Teixeira, presidente do Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos. O psiquiatra defende que nalguns casos pode ser possível "re-enquadrar a identidade de género e as opções de relacionamento" de alguém que sente atracção por pessoas do mesmo sexo. Mas o tema é controverso. Como se verá.
Lidar com a diferença
A Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade da lista das perturbações psiquiátricas em 1973. Foi uma decisão tomada por votação e após um debate acalorado e renhido, como lembra o psicólogo Pedro Frazão, membro da direcção da Sociedade Portuguesa de Suicidologia.
Já no início dos anos 90, a Organização Mundial de Saúde reviu a Classificação Internacional de Doenças e deixou de considerar a homossexualidade como patologia.
No final do mês passado, Annie Bartlett, Glenn Smith e Michael King, investigadores do departamento de saúde mental de duas universidades de Londres, assinaram um artigo publicado no BMC Psychiatry, uma publicação on-line, com os resultados de um inquérito a cerca de 1300 psicólogos, psicoterapeutas e psiquiatras.
Perguntaram-lhes o seguinte: caso fossem procurados por um cliente que pretendesse "mudar" ou "redireccionar" a sua "orientação homossexual" tentariam fazê-lo? Quatro por cento dos inquiridos responderam que sim. E quase um quinto disseram que já trataram pessoas com esse objectivo.
Apesar de não haver provas de que estes métodos sejam eficazes, e de se temer que possam ser prejudiciais, escrevem os autores, "os tratamentos para alterar a orientação sexual não são uma coisa do passado" - como, aliás, outros estudos semelhantes já tinham demonstrado, nota a psicóloga Gabriela Moita.
Não há muitos anos, em Inglaterra, como de resto em Portugal, havia registo de homossexuais sujeitos a terapias agressivas, que passavam pela aplicação de eletrochoques ou pela injecção de substâncias que causavam mau estar à medida que imagens com pessoas do mesmo sexo eram visualizadas.
Michael King, professor da University College Medical School, diz que não perguntou agora aos inquiridos o que fazem eles com os seus clientes. Mas está preocupado: "Sabe Deus o que fazem", disse ao jornal britânico The Independent.
Ao diário The Guardian acrescentou: "Muitos homens e mulheres ficam perturbados quando percebem que são homossexuais", e alguns dos terapeutas a que recorrem podem ter "as melhores intenções" - alguns dos inquiridos admitiram que ajudam os seus clientes a "mudar" porque eles lhes contam que são alvo de situações de discriminação.
Mas King diz que o que os terapeutas deviam realmente fazer era "ajudar as pessoas a ajustar-se" e a lidar melhor com as situações. Porque o problema é social, não está na orientação sexual, acrescenta Gabriela Moita. A prová-lo, diz, está o facto de não haver registo de um heterossexual ir ao médico pedir para ser gay.
Preconceito e ignorância
Telmo Baptista, psicólogo e presidente da Associação Portuguesa de Terapias Comportamental e Cognitiva, diz que a opinião maioritaria, a nível internacional, é a de que "não se deve fazer qualquer intervenção" para alterar a orientação sexual de alguém. Ele próprio já foi indirectamente abordado por pais de jovens homossexuais, angustiados com a homossexualidade dos filhos, e explicou-lhes que nunca aceitou fazer qualquer terapia nesse sentido. Porque acha que é prejudicial.
Mas se algum inquérito fosse feito em Portugal, "os resultados não seriam, infelizmente, distantes dos dados ingleses", afirma Gabriela Moita.
Esta psicóloga investigou o discurso dos psicoterapeutas em relação a homossexualidade, no âmbito da sua tese de doutoramento defendida em 2001. E concluiu, das discussões de grupo realizadas, que entre os terapeutas portugueses há homofobia e ignorância. Ilustra: "Alguns consideraram a homossexualidade uma 'disfunção', uma 'paragem no desenvolvimento', uma 'falha', um 'fenómeno de moda', uma 'forma de obter sensações mais fortes'." A psicóloga diz que ouviu mesmo comentários que se referiam à homossexualidade como "um certo tipo de desporto radical" ou "uma forma de afirmação".
Indigna-se ainda hoje quando fala disso. Porque acredita que nada mudou. "Isto é brincar com a ciência e sobretudo brincar com as pessoas."
A situação é tal que teme que possam estar ainda a ser usadas, em Portugal, terapias agressivas para mudar a orientação sexual de pessoas. Não sabe de casos concreto, actuais. Mas não se espantaria.
O presidente da direcção do Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos não acredita que tal esteja a acontecer. As chamadas terapias aversivas pertencerão ao passado, "numa época em que socialmente a homossexualidade era reprovada e não aceite". Actualmente, remata, "o mais adequado" é avaliar no plano psicológico e psiquiátrico a pessoa que pede ajuda e "implementar terapêuticas adequadas à sua problemática".
Marques Teixeira distingue, de resto, diferentes tipos de situações a que correspondem formas distintas de actuar: "Se alguém tem uma orientação sexual de natureza homossexual e se sente bem com isso, em princípio não terá problemas. Mas se, pelo contrário, apesar dessa orientação sexual, não se sentir bem com isso, então temos um conflito psicológico que necessita ser gerido" e "esta gestão pode ser o objectivo terapêutico de um processo de tratamento psicológico", começa por explicar, em declarações ao P2, por e-mail.
Há casos de pessoas que "sentem" que têm "atracção sexual por pessoas do mesmo sexo" mas não desejam ter e pedem ajuda. E esse pedido pode ser desde um "ajude-me a não me sentir mal com esta minha tendência", até um "ajude-me a não ter esta tendência - isto é, a não ser assim". Compete ao clínico, diz Marques Teixeira, "avaliar a exequibilidade do pedido" que lhe está a ser feito.
"Se um indivíduo tiver uma homossexualidade primária (isto é, com um cunho biológico muito marcado, traduzido em tendências homossexuais desde muito novo e tendo tido sempre este tipo de orientação ao longo da vida) será muito difícil 'deixar de ser assim'. Aqui, a ajuda será no sentido de o ajudar a aceitar-se como é", explica. Já "se for uma homossexualidade secundária (ou seja, mais uma opção aprendida ao longo do desenvolvimento, muitas vezes com experiências heterossexuais positivas e gratificantes, antes da opção homossexual)", então, diz o professor da Universidade do Porto, deve estudar-se a possibilidade "de se re-enquadrar a identidade de género e as opções de relacionamento sexualizado" do cliente. Como? Através das "várias formas de psicoterapias"
Marques Teixeira nota que um "tratamento" deste tipo não serve exactamente "para tornar alguma pessoa com uma orientação homossexual numa pessoa com uma orientação heterossexual ou mesmo bissexual" - "seria como 'tratar' um heterossexual para se tornar um homossexual". É antes "uma ajuda na gestão dos conflitos internos".
Decidir de quem se gosta?
Paulo Côrte-Real, dirigente da ILGA Portugal, associação de defesa dos direitos das pessoas LGBT, suspira do outro lado da linha telefónica quando se lhe fala do assunto: "Houve uma psiquiatrialização da homossexualidade durante décadas, muitos médicos fizeram a sua formação nas faculdades quando ainda era considerada uma doença e hoje o que existe é uma ignorância profunda."
O facto de ainda hoje se falar em "tratamento da homossexualidade" tem a ver com isso. O problema, diz, está longe de se reduzir à saúde mental. É geral: "Por exemplo, a maior parte dos ginecologistas não sabe dar informações a uma lésbica sobre sexo seguro."
Mais: se um gay vai ao médico porque está com uma depressão é frequente que o médico associe a depressão à homossexualidade, acrescenta Gabriela Moita. "A primeira coisa que faz é, na maior parte dos casos, agir com preconceito, fazendo uma leitura muito grave: 'Esta pessoa veio pedir-me apoio para a depressão, se eu não resolver a questão da homossexualidade a pessoa mantém-se deprimida.' Veja-se o grave que isto é!"
A psicóloga diz que não faz qualquer sentido que um técnico de saúde mental aceite trabalhar para a mudança da orientação sexual de alguém: "É muito grave, desde logo, porque o terapeuta está a adoecer essa pessoa. Ao invés de ajudá-la a viver numa sociedade que já lhe é hostil, onde há homofobia, está a fazer exactamente o contrário. Depois, não há nenhum tratamento que tenha levado algum ser humano a conseguir decidir de quem gosta ou de quem vai deixar de gostar."
Recusa, de resto, conceitos como "homossexualidade primária ou secundária". É que, diz, "não há sequer qualquer consenso sobre a razão pela qual somos heterossexuais ou homossexuais". Nos anos 30, por exemplo, "quando se descobriram as hormonas ligadas às questões sexuais, houve um boom de estudos que queriam comprovar que a orientação sexual estava ligada as questões hormonais; uma série de estudos diziam que sim, estudos replicados demonstraram que não... relativamente à genética tivemos a mesma história..."
30 anos de tratamentos
Já Adriano Vaz Serra tem uma perspectiva muito diferente. Sublinha que "há mais de três décadas que têm sido criadas técnicas para abordagem destas situações" sendo que "as mais frequentes derivam da terapia cognitivo-comportamental e têm variado com o andar do tempo."
O psiquiatra dá mesmo exemplos de algumas técnicas utilizadas em pessoas que procuraram tratamento. Cita por exemplo N. McConaghy, um autor australiano, "que descreve situações em que, indivíduos com grande ansiedade social perante uma mulher, foram tratados com êxito por técnicas de dessensibilização sistemática" - "Num estado de relaxamento profundo, sem qualquer ansiedade, [os homossexuais] eram treinados a percorrer situações em que gradualmente se iam aproximando da mulher que seleccionavam até acabar por ter relações sexuais com ela", descreve. "Ao longo do percurso eram ensinadas aptidões sociais, para que soubessem lidar bem com a abordagem a ser feita e, ao mesmo tempo, se tornassem sensíveis a manifestações de comportamento não verbal por parte da mulher, que indicavam permitir a sua aproximação."
O médico sublinha contudo que "só deve ser aceite para tratamento aquele que não estiver deprimido e for de espontânea e livre vontade".
Pedro Frazão contrapõe: se um gay ou uma lésbica o procurar para lhe fazer um pedido semelhante procurará "desconstruir" esse pedido e defenderá que as terapias "chamadas de conversão ou reparativas" têm "falta de credibilidade na comunidade científica".
"O foco das terapias actuais, designadas muitas vezes como afirmativas, encara o sofrimento que as lésbicas e gays muitas vezes trazem como uma consequência da homofobia e não como algo proveniente da sua orientação sexual", explica o psicólogo.
Nem sempre, como se viu, é isso que se passa. Na sua tese, Gabriela Moita relata casos de gays a quem foi prescrito como tratamento, "ir passear para o shopping para tentar engatar umas miúdas". E casos de lésbicas a quem os médicos tentaram convencer que, certamente, não seriam lésbicas porque não tinham uma aparência exterior que se adequasse ao estereótipo. "Não tem a carga dramática dos choques eléctricos", diz, mas é igualmente prejudicial.