Eles voltam hoje ao Tarrafal e querem transformá-lo num museu
São ex-presos políticos. Nunca estiveram todos juntos. Reúnem-se hoje,
nas casernas do Tarrafal. Há muita documentação revelada e por revelar
a É num rectângulo desolado com casas-de-banho ao fundo - a caserna desta fotografia a cores - que cerca de 50 homens se vão encontrar hoje. Edmundo Pedro, português, ao lado de Luandino Vieira, angolano. Justino Pinto de Andrade, angolano, ao lado de Constantino Lopes da Costa, guineense, ou de Luís Fonseca, cabo-verdiano. Ao todo, um português, 13 guineenses, 23 angolanos e 12 a 17 cabo-verdianos (ontem ainda não era certo), todos ex-presos políticos do Tarrafal.
Os testemunhos serão cruzados e recolhidos, uma exposição revelará meses de pesquisa, e vai debater-se um projecto para transformar o Tarrafal num museu.
"É a maior iniciativa feita sobre o Tarrafal entre Portugal, Angola, Guiné e Cabo Verde", avalia o historiador Fernando Rosas, que também estará neste Simpósio Internacional sobre o Campo de Concentração do Tarrafal, tal como Mário Soares, Pacheco Pereira e vários investigadores e dirigentes dos quatro países envolvidos. Organizado pela Fundação Amílcar Cabral, de Cabo Verde, com apoios vários, decorre até sexta, dia em se completam 35 anos do encerramento do Tarrafal como campo de presos políticos.
Entre as câmaras que vão registar esta reunião inédita estará a de Diana Andringa, a recolher depoimentos dos tarrafalistas para um documentário.
"Será a primeira vez que nos encontramos tantos", diz o sempre resistente Edmundo Pedro, 90 anos, que já voltou ao Tarrafal em cinco ocasiões, mas não conhece a maioria dos africanos presos depois dele. "Vai ser um grande acontecimento. Está tudo ali polarizado, a memória do que foi a resistência antifascista e a luta anticolonial."
Pessoas "de diferentes gerações e origens sociais", mas "a defender o mesmo, a liberdade e dignidade do homem", diz Álvaro Dantas Tavares, presidente da comissão organizadora. "O Tarrafal interpela-nos a todos. Temos o dever de transmitir essa lição de bravura, de determinação e heroísmo, para que as gerações futuras possam ver no sacrifício algo de inspirador." O irmão, Carlos Tavares, esteve preso no Tarrafal, e estava ao portão, a festejar a saída dos últimos militantes, a 1 de Maio de 1974.
Da primeira fase do campo - entre 1936 e 1954, quando oficialmente se chamava Colónia Penal de Cabo Verde, e se destinou a portugueses que combatiam a ditadura - restam dois sobreviventes, e um não está em condições de viajar.
Da segunda fase - entre 1961 e 1974, quando a ditadura lhe mudou o nome para Campo de Trabalho de Chão Bom, destinando-o a militantes nacionalistas das colónias -, há dezenas de sobreviventes, e todos foram convidados a viajar até à Ilha de Santiago.
O Tarrafal era um pântano infestado de mosquitos no Norte desta ilha cabo-verdiana, quando Salazar assinou o despacho em que pede a criação de uma colónia para "presos políticos e sociais", em 1935. O regime fez reconhecimentos nas ilhas de São Nicolau e da Boavista e optou pela parte mais insalubre de Santiago.
Os próprios prisioneiros da primeira leva, a 29 de Outubro de 1936 - incluindo Edmundo Pedro, com 17 anos -, é que ergueram os rudimentos do campo, à custa de trabalhos forçados, sem água potável, sob espancamentos e com temperaturas de 50 graus.
Criado para matar
Foi "uma política deliberada de aniquilamento físico", diz Alfredo Caldeira, da Fundação Mário Soares, parceira do simpósio e coordenadora da exposição e do catálogo, com documentos como o despacho de Salazar. "Penso que é o primeiro levantamento que permite juntar um conjunto de documentação inédita sobre o Tarrafal."
A pesquisa coube a Susana Martins, investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, que passou cinco meses mergulhada nas fontes, da Torre do Tombo aos arquivos de cada país, e confirma essa intenção inicial: "O Tarrafal foi criado para as pessoas morrerem."
De resto, a história completa do campo "continua por fazer". Muitas fontes, apenas identificadas, aguardam quem as explore.
É inequívoco que a primeira fase foi muito mais dura. Entre os 361 portugueses com registo de estadia no Tarrafal, morreram 32. Alguns são nomes históricos do PCP, como o secretário-geral Bento Gonçalves. E deve-se à empenhada organização comunista boa parte do que foi sendo conhecido desta fase.
Mas outras partes ficaram mais na sombra. "Tem-se silenciado a componente anarquista, que foi muito importante", diz Alfredo Caldeira. Talvez porque os anarquistas foram neutralizados ali e não havia um aparelho que privilegiasse aquela memória. "Tentamos dar uma versão muito mais ampla sobre o campo, as várias organizações dos presos. Maioritariamente eram comunistas e anarquistas, mas também havia republicanos, socialistas e mais de 30 combatentes da Guerra de Espanha, que alinhavam com os republicanos, incluindo espanhóis."
Outros documentos na exposição mostram como "o Tarrafal chegou a ser pensado para 4000 presos", num projecto de Cottinelli Telmo, e "é um campo que vai sendo adaptado às necessidades, inspirado nos campos italianos e alemães" da época. "Com excepção dos campos de extermínio, os alemães não criavam campos muito grandes, e essa é uma ideia que preside ao Tarrafal", diz Alfredo Caldeira. "O campo não deve ser grande para ser mais controlável."
Uma parte era ocupada por presos de delito comum e continuou a funcionar depois do encerramento da primeira fase.
Arroz e couve podre
Como os testemunhos são sobretudo da primeira fase, sublinha Alfredo Caldeira, a "fase africana" é a que está mais por desbravar. Dessa fase, a exposição mostra, por exemplo, "que não há contactos entre as várias nacionalidades", separadas por casernas, e "cada província paga os seus presos". Isto significa que "os presos da Guiné não tinham quase o que comer", porque a Guiné tinha muito menos meios do que Angola. Há testemunhos de que só comiam "arroz com couve podre". Susana Martins confirmou que as remessas mencionam apenas arroz e óleo de palma para os guineenses.
Em última instância, no fim da cadeia de responsabilidades, as autoridades em Lisboa sabiam de tudo, foram alertadas várias vezes para as condições no campo, e pressionadas internacionalmente.
E havia pior que o Tarrafal.
Sendo parte de uma rede de campos, de Angra do Heroísmo a Timor, o Tarrafal da "fase africana" não era o mais mortal. Num longo depoimento durante um colóquio em Lisboa, no Outono - e disponível no YouTube -, Justino Pinto de Andrade conta como, comparado com São Nicolau (Angola), o Tarrafal era a sobrevivência. Em vários outros campos africanos, o regime português deixou morrer ou matou os presos.
Mas uma das coisas que impressionam Edmundo Pedro - ele que não morreu por pouco e viu tantos morrer - é como na "fase africana" os presos do Tarrafal estavam em casernas. "O meu período foi mais difícil pela eventualidade da morte, mas eu prefiro o regime que suportei ao deles. Nós só recolhíamos à noite." Inicialmente, em barracas de lona.
Edmundo Pedro foi o mais jovem de sempre no Tarrafal e hoje será o mais velho, ou talvez não. "Claro que sinto energia para viajar", diz, de cravo vermelho ao peito, em véspera de partir. "Ainda agora me renovaram a carta de condução, quer ver?"