Afonso Reis Cabral Escrever sem falar de amor

Ficou em 8.º lugar num concurso europeu de grego antigo, lançou um livro de poesia aos 15 anos. Revê textos e estuda literatura. É trineto de Eça de Queirós, mas recusa carregar o peso dessa influência.

A frase do pai tem anos e não sai da memória: "Hoje nasceu um escritor." Guarda-a como um elogio e assume, sem reservas, que o seu futuro passa pelas palavras. "A minha vocação é escrever." Aos 15 anos, Afonso Reis Cabral lançou um livro de poemas no auditório do Clube Literário do Porto. A casa encheu-se com a família. Baptizou a obra de 90 páginas de Condensação. Uma compilação de poemas escritos entre os 10 e os 15 anos, que não falam de amor e com prefácio da professora de Português. O que se escreve nestas idades? "Ingenuidades, mas escreve-se com paixão. Nessas idades, a poesia é mais um mistério do que outra coisa qualquer", responde. "Nunca falei de amor, é um tema demasiado confessional." Foi a primeira aventura literária. E o que passeia no cérebro ou circula pelo coração e esbarra no papel? "O início é um momento que depois é elaborado. Acabo por não ter um tema, uma trave mestra", explica. O que escreve? "Num impulso de mim, salto fora do ser e sou noutro lugar balada nocturna cantando à janela do meu antigamente." É uma das frases da fase pós-15 anos. Confessa que, há alguns anos, abrir um livro exigia cuidado, delicadeza. "Colocava-o num determinado ângulo para não estragar." Agora não há ângulo que resista. Usa e abusa dos livros. "Rabisco, dobro as páginas e, por vezes, a lombada desfaz-se." Escreveu Como Lidar com Um Livro e aí diz com todas as letras que os livros não são sentimentais. "Se não se dá bem com eles, a culpa é sua." "Todos os livros cheiram, sobretudo, a sussurro. Sussurro de onde sai uma réstia de vento que é um verdadeiro vendaval", escreve. "Depois há aqueles mais novos que são um rol de inocência, pouco se vê, pouco se sabe, pouco se perscrute, mas todo o corpo é percorrido pela vitalidade dos sentidos. Nos vincos dos livros mais velhos cheira-se a vida e vê-se uma sala com todos os seus cantos e ouvem-se mesmo as conversas levadas ao som da música", acrescenta.
Afonso está agora a caminho da prosa, a reformular ideias, a redefinir objectivos, a amadurecer antes de uma nova aventura pelos caminhos da escrita. Está numa fase de introspecção. "Quero seguir com mais apoio. Com ingenuidade, com mistério, com descoberta, quero tentar evoluir." "Tento ser disciplinado na escrita e dentro da minha cabeça escrevo todos os dias." É trineto de Eça de Queirós por parte do pai. "A angústia da influência? Tento combater isso." E não dá hipótese. "O meio familiar é um ponto de partida e o Eça lá está. O mais importante é o esforço no estudo, na escrita", assegura. Escreve por gosto, ora essa.
No ano passado, ficou em 8.º lugar no European Student Competition in Ancient Greek Language and Literature entre 3532 concorrentes de 551 escolas europeias e mexicanas. Ganhou uma viagem de uma semana a Atenas, um diploma e uma medalha antiga entregues por um representante do Ministério da Educação da Grécia, numa cerimónia "intensa" e "sem falhas". E depois de tantos templos carregados de histórias no olhar, ainda teve autorização para nadar numa "baía absolutamente paradisíaca".
O diploma está numa moldura no quarto do estudante em Lisboa e emana uma estranha força. "Dá-me incentivo quando estou estafado, fico com gasolina para mais." Esse mesmo quarto é partilhado com um papagaio que comprou com duas semanas de vida, na altura em que se preparava para o concurso. Foram momentos complicados. Nos primeiros tempos, tinha de alimentar o pássaro do Senegal às oito da manhã, às duas e quatro da tarde e onze da noite. Todos os dias durante mês e meio. O papagaio não recita poemas, assobia influenciado pelo dono. "E assobia bem. Irrita-me a falta de inspiração dos 'olás' dos papagaios. Mais cedo ou mais tarde, tentarei ensinar-lhe algumas palavras... talvez um adeus." Afonso gosta de animais e está a gostar da experiência de "criar um ser vivo desde pequenino". Quando tinha 14 anos, trabalhou numa vacaria perto de Braga durante uma semana das férias escolares. "Foi uma experiência engraçada. Tinha de limpar bosta, conduzir as vacas para o cercado e fazer uma instalação de rega a conta-gotas." Depois disso, meteu-se num camião de um condutor amigo da família e andou pelas estradas até Metz, na pontinha de França. Recorda uma Espanha árida e uma França verdejante. Dormia no beliche instalado no camião que transportava peças para automóveis, ao longo de uma semana das férias da Páscoa. "Conhece-se a realidade dos camionistas: cheia de tacógrafos e velocidades máximas."
Na Secundária Rodrigues de Freitas do Porto, estudou dois anos Latim e optou por Grego no 12.º ano. "É importante para compreender o Português e aperfeiçoar a língua." Lamenta que o Grego "esteja empurrado para um canto" e garante que aprendeu que as línguas consideradas mortas não estão assim tão sem vida. "Aprende-se que o Português tem história, que é um organismo vivo, que tem progenitores." Afonso estudou durante quatro meses para o concurso. Tinha de conhecer bem os escritos de Isócrates e Arriano. A tradução do texto e as respostas às perguntas de História ocuparam-lhe a mente durante quase três horas no dia 12 de Março de 2008. Ficou impressionado com a história de Alexandre Magno que saiu no teste. "Tanto era um carniceiro, como uma pessoa magnânime." "Um dia, um vagabundo pediu-lhe uma esmola e ele deu-lhe o governo de uma cidade. O vagabundo disse-lhe que não precisava de tanto e Alexandre Magno respondeu-lhe: 'Pedes como quem és e eu dou como quem sou'."
Mês e meio depois da prova, a professora de Estudos Clássicos telefonou a dar a novidade. "Fiquei contentíssimo. Esperava uma conclusão, estar num limbo é que era chato." Afonso atribuiu um grande significado à língua. "A importância de uma vida, a interpretação do mundo. Tudo passa pela língua que é o manto que envolve." Não passa um dia sem ler jornais, revistas, livros. Na mesinha de cabeceira está agora D. Quixote e a sua última grande descoberta na escrita foi José Eduardo Agualusa. "Pela sua poesia na escrita, pela sua intensidade."
Na hora de entrar na universidade optou por estudar a literatura pura e dura. O jornalismo, sobretudo o de investigação, não está fora dos planos. Neste momento, faz revisão de textos e índices para algumas editoras. Junta o útil ao agradável. "Aprendo imenso com os livros de História, tento aperfeiçoar o Português e ajuda-me monetariamente." Um part-time que acaba por não sair da rota traçada. Não esconde dos mais chegados o que vai escrevendo e reconhece que é o seu maior crítico. Confessa que tem uma letra feia e que escreve no computador. "É menos bonito, mas é mais prático." E acredita que se lê mais em Portugal. "Mas ler mais não significa ler mais literatura."
Tem uma máquina fotográfica ao dispor lá em casa. Capta imagens, luzes, momentos e faz montagens. Chama-lhe "fotografia ingénua". Guarda as fotos no computador, selecciona as preferidas para colocar em pano de fundo. Garante que até agora não teve nas mãos um livro que lhe tenha "transformado" a vida, mas há um que lhe guia um desejo bem forte. Afonso quer fazer uma viagem marítima até Angola, onde o pai foi capitão miliciano, eventualmente a bordo de um petroleiro. "Nem sei se será possível." Influências do livro Moby Dick. a

sdoliveira@publico.pt

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