Gustavo Dudamel é uma lufada de ar fresco na música clássica. Pelo menos é o que dizem os Dudamelómanos. Aos 28 anos, "Duda" é um caso aparte. A música clássica não é a mesma depois dele ter irrompido nos palcos de todo o mundo. Aos 18 anos tornou-se director musical da Simón Bolívar. "Uma orquestra fabulosa", diz o próprio no início da conversa com o Ípsilon. "Não porque seja a minha orquestra, mas porque tem mesmo qualquer coisa de diferente, de especial", diz o venezuelano. O que tem a orquestra de especial? Já lá vamos.
Gustavo Dudamel teve tempo de conhecer outras orquestras de todo o mundo. Aos 23 anos arrebatou o importante prémio de direcção de orquestra Gustav Mahler. No ano seguinte substituiu o maestro Neeme Järvi (que estava adoentado) num concerto com a Sinfónica de Gotemburgo em Birmingham e em Londres. A coisa correu-lhe tão bem que o rapaz foi convidado no ano seguinte para maestro principal da orquestra sueca. Claudio Abbado e Simon Rattle teceram-lhe rasgados elogios e reconheceram-lhe o enorme talento. Começou, então, a dirigir orquestras na Europa, nos EUA, nos quatro cantos do mundo. Mas sem largar a "sua" fabulosa orquestra, a Simón Bolívar. Para Gustavo o lado artístico, por muito elevado que seja, não é separável do objectivo social: "É um programa de educação musical para ajudar a sociedade a mudar. A orquestra fez uma aprendizagem social e fez uma ligação com cada um dos seus miúdos na Venezuela. É isso que dá o 'especial' da orquestra de que falava antes", diz-nos.
A "Dudamelmania" ou "Dudamania" só é compreensível à luz dos sucessos da Simón Bolívar. O percurso de Gustavo é inseparável da história deste agrupamento. Afinal, foi ali que este grande talento emergiu.
El Sistema
O pai tocava trombone e a mãe deu lições de canto. Isso terá facilitado as coisas - aos cinco anos começou a tocar. Mas o passo decisivo foi a entrada no programa social criado por José António Abreu (economista com jeito para a música) e a inclusão numa das suas orquestras. Deixou cedo a ideia de tocar trombone (tinha os braços muito pequenos) e dedicou-se seriamente ao violino. Daí a dirigir a Simón Bolívar foi um passo. Talvez um pequeno passo para este maestro de instinto, mas um grande passo para a música e para a Venezuela, que nunca teve um talento da música clássica tão popular. Dudamel tornou-se definitivamente "muy famoso".
Hoje, sábado, dirige a Simón Bolívar no Coliseu dos Recreios em Lisboa (às 21h), num concerto integrado no ciclo das Grandes Orquestras Mundiais. Porque esta orquestra já não é só uma excelente orquestra juvenil. É a grande Simón Bolívar. Nome completo: Sinfónica da Juventude Venezuelana Simón Bolívar. Data de nascimento: 5 de Julho de 1978 (ainda não existia Dudamel), pelas mãos de José António Abreu, o inventor do programa social e cultural que orienta os 180 núcleos de orquestras, coros e outros grupos musicais em toda a Venezuela, conhecido por "El Sistema". "Primeiro um programa social, depois um programa cultural", como Dudamel costuma dizer. O sistema é simples: ofereço-te um instrumento musical para as mãos e tu aprendes a tocar na orquestra. A ideia é dar uma hipótese a crianças em situações de risco de sair da rua, da violência ou da pobreza extrema. Os objectivos de José António Abreu passavam por dar ferramentas às crianças de classes desfavorecidas para a sua emancipação. Ou, no mínimo, dar a hipótese de uma saída com a ajuda da música. Hoje há cerca de 300 mil jovens e crianças e uns 15 mil professores de música integrados neste projecto. Os mais destacados jovens músicos dos núcleos integram a Simón Bolívar.
"Aquela orquestra é de elite no sentido em que é a nata do sistema de orquestras juvenis da Venezuela - é o que de melhor o 'Sistema' produziu. Tem um alto nível técnico", diz Rui Nery, musicólogo e actual director do programa da Fundação Gulbenkian "Educação para a Cultura". Acrescenta que a orquestra "tem também um entusiasmo e uma entrega que não se confundem com o mau profissionalismo e com a rotina. 'O sistema' mostra que com métodos e processos adequados é possível que sectores desfavorecidos se apropriem de um património cultural e façam um reprocessamento desse património musical ocidental, conseguindo transcender a realidade de grupos sociais que estavam excluídos dessa música. De certa forma é vencer no terreno do inimigo", diz o musicólogo. Mas é o próprio Dudamel que nos explica que a tarefa de manter de pé "El Sistema" não é fácil e implica muitos meios diferentes: "É possível, mas é preciso vontades, apoio, os recursos humanos, as pessoas, as famílias que queiram dar aos seus filhos uma educação musical."
O lema da Orquestra Símon Bolívar, "Tocar e lutar", já diz algo sobre os seus objectivos. O maestro Simon Rattle afirmou sobre este projecto: "Não há nada mais importante no mundo da música do que o que se está a passar na Venezuela". Ele próprio dirigiu a Simón Bolívar por mais do que uma vez. E não escondeu o seu entusiasmo pela orquestra e pelo seu elevado nível técnico. Dudamel conta-nos como a orquestra conseguiu atingir esse elevadíssimo patamar: "No meu país emergiu uma geração de maestros que deram à orquestra tecnicamente (e musicalmente) um alto nível. E desenvolveu-se tanto que está agora Claudio Abbado a dirigir a orquestra em cinco concertos. E outros: Simon Rattle, Loriz Mazel, grandes maestros que se entusiasmaram com o programa social e o resto das orquestras juvenis mas também com o nível da Simon Bolívar. Maestros da Filarmónica de Berlim, dos EUA, da Gewandhaus de Leipzig, de muitos lados, vieram dar aulas à Venezuela, e isso fez com que o nível da orquestra crescesse muito", diz.
Depois de ouvir e trabalhar com esta orquestra, Claudio Abbado não poupou nas palavras: "Foi um acontecimento único e uma das mais belas experiências da minha vida. A musicalidade, o entusiasmo e o talento das crianças são um exemplo para o mundo." Rui Nery salienta a generosidade de Gustavo Dudamel: "Ele já dirigiu a Filarmónica de Berlim, podia mandar passear a Orquestra Simón Bolívar, mas não o faz - faz questão de manter essa bandeira. É de grande generosidade, porque deve estar a receber ofertas excelentes de grandes orquestras que pagam muito dinheiro."
Superstar
Dudamel é todo entusiasmo. E não o esconde mesmo quando estamos a falar de rigor e disciplina: "A energia e a paixão são muito importantes mas a preparação o estudo e o aprofundamento na música também são muito importantes. Trabalho muito e profundamente com a Bolívar. Fazemos muitos ensaios, trabalhamos semanalmente reportórios diferentes, tal como uma orquestra profissional, apesar de ser uma orquestra juvenil. É assim que trabalho com as orquestras - preparo-me muito bem e aprofundo a obra." É conhecido por dirigir com os braços muito levantados e de forma muito activa. "Estilo de direcção hiperactivo", disse um crítico do jornal inglês, o "Guardian". Outros críticos questionam o seu sucesso mediático que atinge a dimensão de uma estrela pop. Problema? Sim: um outro crítico musical ficou furioso por não conseguir entrar num dos seus esgotadíssimos concertos.
Sucesso a mais? Ou será a "Dudamania" uma boa oportunidade para acabar de vez com o cinzentismo que também existe na música clássica? Para Rui Nery o sucesso comercial não é o problema: "Não há nenhum pecado no mercado fazer isso. Ele tem um grande talento e as indústrias culturais apercebem-se disso. Ele é um bom investimento para grandes empresas e grandes festivais." Não deixa contudo de interrogar as razões do fenómeno Dudamel. Segundo Nery, são duas razões fundamentais que vêm juntas: "A primeira tem a ver com o talento de Dudamel, fenómeno de precocidade e talento raros. A segunda tem a ver com uma má consciência europeia em relação ao terceiro mundo. Há uma espécie de sentimento de culpa que faz com que uma coisa já de si muito boa tenha uma valorização redobrada. Mas em primeiro lugar está o grande talento dele", insiste Nery.
Para Dudamel o sucesso mede-se não pela publicidade, mas pelos resultados no terreno, no seu país. E diz que o segredo, para além de estar na massa (23 milhões de euros por ano do Estado venezuelano), está na ideia de um homem: "O segredo é o maestro António Abreu, o criador de tudo isto - o seu empenho e a sua luta para conseguir dar à infância e à juventude venezuelana uma educação artística e uma possibilidade de mudança social através da música. Isso torna-o único e um herói no nosso país", diz Gustavo.
A cantora Shakira afirmou há algum tempo numa entrevista ao "Los Angeles Times" que Dudamel "é uma inspiração" e um exemplo, referindo-se ao facto de ser um miúdo pobre da Venezuela que se tornou um dos maiores maestros do mundo.
Também Dudamel é hoje um fenómeno "pop", apesar do seu terreno artístico ser o da música clássica. Assinou um contrato com a Deutsche Grammophon em 2005 que lhe garante não apenas a gravação de discos, mas que sustenta uma campanha comercial à sua volta, incluindo "merchandising", é claro, com t-shirts e sacos com o nome de Dudamel ou com as capas dos seus discos estampadas. Já para não falar na sua muito comentada vida privada e a sua relação com a jornalista e bailarina Eloísa Maturen, com quem casou há pouco tempo.
Um novo Bernstein?
Já gravou em disco Beethoven, Mahler, Tchaikovsky, entre outros. No Coliseu de Lisboa vai dirigir uma obra do mexicano Silvestre Revueltas ("Sensemayá") e dos venezuelanos António Estévez ("Mediodía en el Llano") e Evencio Castellano ("Santa Cruz de Pacairigua"). "O nosso grande compositor Castellano faz parte do período nacionalista na Venezuela ligado aos impressionistas, é de uma geração muito influenciada por Debussy e Ravel e isso ouve-se na obra, mas com uma linha de ritmo e melodias típicas da Venezuela", explica.
Mas o prato forte, amanhã, é a "Sagração da Primavera", de Stravisnky, obra que Dudamel considera "muito difícil, mas que fica muito bem a esta orquestra, porque precisa de uma personalidade muito firme e jovem. É uma obra que fala da adolescência, dessa jovem que se sacrifica. Está ali a juventude mas ao mesmo tempo está em causa a experiência e um pensamento profundo sobre o nascimento do nosso mundo."
Juventude e profundidade, precisamente as qualidades que muitos atribuem a Dudamel. E é a falar da "Sagração" que Dudamel nos lembra outra grande referência sua, o maestro norte-americano Leonard Bernstein: "Gosto muito da reflexão que fazia Bernstein - ele dizia que as pessoas podem ouvir na Primavera o que nasce entre as folhas e falava do que se pode ouvir quando se põe o ouvido na terra, de como tudo está a nascer outra vez. Para mim é isso. Um nascimento que tem relação tanto com a natureza como com a humanidade."
Rui Nery não considera disparatada a comparação com Bernstein: "Não conheço caso parecido [com Dudamel]. Não me lembro de um maestro tão jovem, vindo de tão longe que tenha triunfado assim no meio musical. Mas nalguns aspectos ele aproxima-se de Bernstein - porque está atento às músicas populares da América Latina tal como Bernstein estava da música popular da América do Norte e porque há um lado selvagem, instintivo, natural no talento dele. Tudo é bem estudado, analisado e desconstruído, mas é muito instintivo, há um imediatismo que nasce da expressão espontânea. A energia dele é contagiante, ele acredita no que está a fazer. É extraordinário."
Fogo, entusiasmo, empenho, rigor técnico, paixão, tempestade, profundidade, juventude - tudo isto é Dudamel. À sua energia contagiante e à força da sua música há que acrescentar ainda aquele seu sorriso simpático e generoso, que também dá o seu contributo para a febre mundial da Dudamania. Despede-se de nós com a certeza de que "vai ser um concerto e uma estadia muito especial", depois de há três anos ter vindo a Lisboa dirigir a Orquestra Gulbenkian. Agora é a vez de trazer a "sua" Simón Bolívar. Um projecto social exemplar, uma orquestra, uma bandeira, um maestro de excepção. Como disse o músico e maestro argentino Daniel Barenboim dirigindo-se à Simón Bolívar: "Vocês representam um exemplo único para o mundo inteiro".