Mais cabeça do que coração

"Amor de Perdição" de Camilo Castelo Branco funciona já como actualização de uma situação dramática anterior, que podemos fazer remontar, pelo menos, ao "Romeu e Julieta" de Shakespeare, também ele objecto de inúmeras transposições, epocais e espaciais, da Nova Iorque multiétnica, em "West Side Side Story/Amor sem Barreiras", à Califórnia (Verona Beach) do presente na versão "kitsch" da peça realizada por Baz Luhrman - isto para apenas nos reportarmos ao cinema.

Na nossa cultura oitocentista, o romance faz figura de matriz essencial para os amores funestos e descabelados, de que Camilo constitui expoente máximo, mas transborda, no século XX, para o teatro e, que é o que nos interessa aqui, para o cinema nacional: George Pallu (1921) sublinha o lado pictórico e pitoresco; António Lopes Ribeiro (1943) explora um romanesco arrumadinho, melodramático e bem comportado; Manoel de Oliveira (1979) toca as raias do excesso, com ecos, voz "off" e tintagens trágicas. Para cada um seu "Amor" e cada momento histórico reconfigura o que lhe interessa sobremaneira.

Agora, no dealbar do século XXI, Mário Barroso, o intérprete de Camilo, em "Francisca" e "O Dia do Desespero", antecipa ao mito o artigo indefinido ("Um") e insiste na carga universal e intemporal dos amores de Simão e de Teresa, variando livremente sobre os motivos camilianos, de forma artificiosa e moderna: o essencial está presente, mas é a leitura que passa por curiosos acrescentos. Por um lado, há laivos incestuosos na relação de Manuel, irmão de Simão, com a mãe (Ana Padrão no melhor que lhe vimos em cinema) e na de Simão com a irmã mais nova, uma Ritinha deliciosamente juvenil. Por outro, "inventa-se" uma personagem que simboliza a criadagem, um jovem negro que confere à acção cambiantes multiraciais, instrumental numa unificação entre figuras algo desgarradas e perdidas.

A actualização, propriamente dita, acaba por fazer pleno sentido: João da Cruz é mecânico de automóveis, antigo combatente na Guerra Colonial e atormentado por pesadelos bélicos; Mariana aparece masculinizada, de fato-macaco, para, depois, se ir insinuando na trama amorosa, sem nunca atingir o lado trágico que convinha; Simão (um fabuloso Tomás Alves) reveste-se de uma rebeldia contemporânea, vestido a rigor de marginal suburbano, apesar da sua origem de classe alta; Coimbra e Viseu transformam-se numa Lisboa quase abstracta (sem conseguir ser completamente fantasmática); a "honra manchada" do original dá lugar a um conflito de interesses profissionais e legais (o pai Botelho é advogado); as cartas exacerbadas entre o par amoroso aparecem substituídas por comunicações episódicas ao telemóvel. Ou seja, o trabalho sobre as correspondências resulta, sem forçar muito a nota, numa amável fluência e numa inteligente economia de meios produtivos. Como já sucedera em "Milagre Segundo Salomé", a sua primeira obra fílmica, Mário Barroso mostra uma admirável noção dos limites orçamentais e do equilíbrio fundamental a uma ficção comunicativa.

O que falta então a este "Um Amor de Perdição" para que se eleve de um bom filme, bem contado e organizado, a mais do que isso, uma tragédia contemporânea de amores contrariados? Precisamente aquilo que o romance de Camilo tem de sobra: paixão, desregramento, desmesura. A sombra de Teresa, mais uma aparição sonâmbula do que uma heroína trágica, esbarra num certo lado programático e calculado da ficção. Ou, para parafrasear um dos romances satíricos fulcrais do universo camiliano, "Coração, Cabeça e Estômago", existe mais cabeça do que coração, que o estômago não é para aqui chamado.

O epílogo aparece como algo de preparado, até forçado, uma catástrofe por medida, que não se compadece plenamente com a perda da razão que se pretendia demonstrar. Dito isto, deve saudar-se o facto de "Um Amor de Perdição" escapar à tentação do telefilme ilustrativo, mas a "perdição" fica, ainda assim, a um passo não totalmente transposto.

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