Being Eszter Salamon

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Há uma Eszter Salamon que morreu em Auschwitz, uma Eszter Salamon que acaba de completar o ensino secundário numa pequena aldeia da Hungria, uma Eszter Salamon que emigrou para Newcastle, uma Eszter Salamon que foi para um "kibutz" plantar toranjas, uma Eszter Salamon que teve dois namorados ao mesmo tempo e uma Eszter Salamon que rezou pela primeira vez na vida no dia em que a Roménia começou a desfazer-se do comunismo.

Também há uma Eszter Salamon que estudou dança na Hungria e depois se mudou para Berlim, onde ainda vive, porque havia demasiadas coisas que não podia fazer em Budapeste. Voltou lá, há uns anos, para conhecer todas as Eszter Salamon que conseguiu encontrar (excepto a Eszter Salamon de Newcastle) quando resolveu escrever essas duas palavras no Google e descobriu que o nome que vem no passaporte dela também vem no passaporte de muitas outras mulheres. Falam todas ao mesmo tempo em "And then", o espectáculo que vamos ver em Serralves no domingo à noite.

Sempre que fala disto que podia ter sido uma autobiografia, Eszter Salamon diz que é exactamente como se encontrássemos um álbum de fotografias na rua e de repente uma série de pessoas que não sabemos quem são estivessem ali a olhar para nós, no último degrau da igreja onde se casaram, ou à porta da "roulotte" onde passaram férias. É assim, de facto, que "And then" termina: com fotografias em que é sempre ela, Eszter Salamon, mas com um cabelo diferente, um sorriso diferente, uma data de nascimento diferente, uma nacionalidade diferente e uma história de vida diferente. Interessou-lhe mais ir atrás daquilo que as separa do que daquilo que as une, mas em certo sentido, diz, são todas da mesma família.

É um lugar estranho, esta fotografia de família em que oito ou nove Eszter Salamon falam ao mesmo tempo - mas é um lugar estranho sobretudo para ela. Foi a última a saber que Eszter Salamon não era um nome, era uma multidão. "Há uns anos soube de outra Eszter Salamon, uma música húngara, através de uma amiga. Achei muito estranho porque o meu nome sempre foi considerado relativamente incomum e eu nunca me tinha cruzado com outra Eszter Salamon. A seguir fui ao Google e descobri que existiam muitas outras. Fiquei entusiasmadíssima", diz a partir de Berlim.

Era a peça certa na altura certa: "Estava a meio de outro projecto que é uma espécie de autobiografia minha como bailarina ["Magyar Tancok", que vai estar no festival Entre^Serras, em Minde, a 20 de Novembro], e portanto esta pesquisa acerca do meu nome coincidiu com uma fase em que estava muito interessada em relatos autobiográficos, nas questões da  memória e da identidade. Por outro lado, trabalho sobretudo com mulheres - é um programa artístico e político ao mesmo tempo - e isto dava-me a oportunidade de aprofundar essa orientação."

Demorou meses a localizar as Eszter Salamon que rastreou no Google - seguiu todas as pistas, porque antes de começar a fazer alguma coisa queria ter uma ideia de conjunto e perceber o tipo de escala que este projecto podia assumir, e fez contactos sucessivos, porque nalguns casos as primeiras abordagens falharam. "Escrevi centenas de emails, houve algumas mulheres que só me responderam à segunda ou à terceira tentativa quando perceberam 'ok, não é um gajo que me está a assediar'. Trabalhei com todas as que consegui entrevistar - eram mais, mas houve algumas, húngaras, que não consegui encontrar e outra americana, a morar em Brooklyn, que talvez venha de um meio muito ortodoxo", explica.

Linhas cruzadas

Começou por falar com elas sobre o nome - mas percebeu muito depressa que ia ser redutor. "Olhei para elas e vi idades diferentes, profissões diferentes, meios diferentes. Era evidentemente mais interessante trabalhar a partir das nossas histórias de vida mas, claro, não foi fácil: algumas delas são extraordinárias contadoras de histórias e adoram conversar, com outras foi complicado chegar a algum lado sem as dirigir de mais", continua.

A meio do processo, tinha 30 horas de entrevistas que trabalhou com uma dramaturga, Bojana Cvejic, porque precisava de uma pessoa de fora para "ganhar distância" ("sozinha isto podia transformar-se numa auto-obsessão"). Como não podia ter todas as Eszter Salamon em palco - era "económica e logisticamente impossível" - e também porque lhe interessava que houvesse duas realidades paralelas, há histórias que se passam no palco, e histórias que se passam num ecrã. Interferem umas com as outras como linhas telefónicas cruzadas (cruzam-se, sobrepõem-se, interrompem-se): é exactamente esse o efeito de "And then".

Elas nunca falam em coro, apesar de, em parte, se reconhecerem umas nas outras: "São quase todas húngaras e eu vivi na Hungria até aos 21 anos. Conheço a história, conheço a língua, conheço as idiossincrasias. Todas temos histórias com água, todas gostamos de matemática e todas tivemos problemas com os pais. Mas algumas de nós são católicas e outras são judias, algumas ficaram e outras saíram. O nome é um marcador, mas não encerra tudo".

Ela fez de tudo para que neste álbum de fotografias de família que agora temos à frente também estivessem os primos afastados que ninguém fazia ideia que existiam. "Percebi que o nome Salamon tem a mesma origem que Shlomo e Suleiman, e que Ester, que toda a gente pensa que é um nome hebreu, é na verdade um nome persa, vem de Ishtar. Fui muitas vezes ao Google e usei todas as combinações possíveis de Suleiman com as variantes que Ester assume no mundo árabe porque queria mesmo encontrar alguém que viesse de fora desta matriz judaico-cristã. E procurei homens com este nome, mas também não tive sucesso", lamenta. Ainda. "And then" é uma coisa que não está fechada, como a memória (e isso é uma coisa que está nesta peça desde o título). A seguir a estas Eszter Salamon pode haver - e vai haver - outras.

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