A revolta estudantil que abalou o marcelismo
Há 40 anos, os estudantes de Coimbra fizeram greve aos exames e mostraram ao país que os tempos estavam a mudar
a Quarenta anos após a célebre sessão de 17 de Abril de 1969, quando Alberto Martins, actual líder parlamentar do PS, pediu a Américo Tomás para usar da palavra, iniciando três meses de revolta estudantil que abalaram o marcelismo, a crise académica continua a suscitar múltiplas leituras. Foi o prenúncio do fim do regime ou apenas um momento significativo num processo de lutas académicas que vinha de trás? Foi uma incipiente versão portuguesa do Maio de 68 ou a revolução de costumes resumia-se a uma minoria olhada de soslaio pela massa dos estudantes? A operação foi controlada por um pequeno grupo politizado ou a própria dinâmica do movimento anulou a eficácia de quaisquer centros decisórios? Estas e outras questões recebem ainda hoje respostas diferentes, mesmo dos que participaram activamente nos acontecimentos. E o modo como os protagonistas da crise se confrontam com a curiosidade das novas gerações não é menos variável. O jornal académico A Cabra, numa edição especial destinada a assinalar o 40.º aniversário do 17 de Abril, ouviu diversos intervenientes. Alberto Martins recorda emotivamente o papel que desempenhou: "O que esperava era que me prendessem e espancassem, mas eu tinha de pedir a palavra. Era o meu compromisso".
Instante mágico
Já o advogado Celso Cruzeiro, que foi um dos principais rostos do movimento e historiou a crise no livro Coimbra, 1969, mostra-se farto de relembrar o passado e prefere falar do presente e "das crises que por aqui andam". E o cineasta João Botelho, autor de muitos dos cartoons satíricos que circularam entre os estudantes, assina um depoimento intitulado Crise! Qual Crise?, no qual desvaloriza a luta propriamente política e ideológica em favor da vivência colectiva e libertária.
Manuela Cruzeiro, que viveu a crise e a tem estudado no âmbito do Centro de Documentação 25 de Abril, acha que a diversidade destes olhares retrospectivos é inevitável, porque "todos nós lemos esses episódios à luz dos nossos percursos posteriores e da visão que temos da realidade actual". Alguns, diz, "integram esse momento num trajecto pessoal que para eles faz sentido", o que pode levar a "um certo aproveitamento", ao passo que outros o recordam como "um instante mágico e único de vivência solidária".
O contexto político no qual se desenvolve a crise é o do marcelismo, então espartilhado entre as pressões dos salazaristas radicais e os desejos de mudança da ala liberal do regime. Manuela Cruzeiro está mesmo convencida de que o então reitor da Universidade de Coimbra (UC), Andrade Gouveia, não avisou deliberadamente o Presidente Tomás de que os estudantes iriam exigir a palavra, para que ele visse as consequências que poderiam trazer as liberdades que o regime ia concedendo.
Uma cidade sitiada
No plano internacional, o ano anterior tinha sido o da Primavera de Praga e do Maio de 68, que só terão influenciado uma minoria mais politizada de estudantes. O que a todos dizia respeito era a guerra colonial, que, como notou ao PÚBLICO o historiador Miguel Cardina, está "completamente ausente de todos os textos produzidos durante a crise". Os líderes da revolta sabiam bem que esse era um tema tabu, se não queriam que o movimento fosse precocemente decapitado.
As reivindicações limitavam-se à academia. Os estudantes queriam liberdade de associação, representação nos órgãos da universidade e democratização do ensino. "Era isso que o Alberto Martins ia pedir, se o tivessem ouvido", diz Cardina.
Desde 1964/1965 que a Associação Académica de Coimbra (AAC) era dirigida por estudantes nomeados pelo Governo, o que levou à criação de uma Comissão Pró-Eleições, que persuade o Governo a autorizar eleições, realizadas em Fevereiro de 1969. Uma lista de esquerda, emanada do Conselho de Repúblicas, ganha folgadamente e assume a direcção da AAC. É presidida por Alberto Martins, que é mandatado para falar na inauguração do novo edifício de Matemáticas, à qual assistiriam Américo Tomás e vários ministros. O Presidente, apanhado de surpresa, diz "Bem, mas agora fala o senhor ministro da Obras Públicas". No entanto, quando este acaba de intervir, Tomás encerra a sessão e sai com a sua comitiva. É apupado na sala, e ainda mais cá fora, onde se concentrava uma multidão de estudantes.
Na madrugada do dia 18, Martins é preso durante algumas horas pela Pide e o Governo manda a polícia de choque reprimir os estudantes que exigiam a sua libertação. O ministro da Educação, José Hermano Saraiva - a quem a crise acabará por custar o lugar -, suspende as aulas, mas mantendo a época de exames. A partir daqui, o que poderia não ter passado de um atrevimento inócuo torna-se um caso nacional. Os estudantes decretam luto académico, recusam-se a fazer a Queima das Fitas e, na mais concorrida assembleia de que há memória na UC, decidem fazer greve aos exames. É uma aposta arriscada, porque implicava um grau de comprometimento pessoal muito diferente do de participar anonimamente em manifestações colectivas. Significava, em muitos casos, perder bolsas, correr o risco de ir para a tropa.
As autoridades sitiaram literalmente a zona da universidade, enviando a cavalaria da GNR, jipes com arame farpado e cães-polícias. Junho e Julho foram meses de quase guerrilha urbana, com os estudantes a organizar piquetes para impedir os que se dispunham a fazer exame. Espalhavam sebo nas ruas, para os cavalos escorregarem, e semeavam pregos que furavam os pneus dos jipes. Em Agosto, soube-se que a adesão à greve rondara os 87 por cento.
Em Setembro, 49 dirigentes estudantis são recrutados compulsivamente e colocados em Mafra. É o fim da crise, cujo epílogo só ocorreria em Abril de 1970, quando, após meses de negociações intermediadas pelo novo reitor da UC, Gouveia Monteiro, vários professores que se tinham solidarizado com o movimento, e ainda seis dirigentes da AAC, foram garantir ao Presidente da República que não tinham pretendido ofendê-lo. Desta vez, Tomás deixou falar Alberto Martins, que se limitou a afirmar que os estudantes subscreviam o que fora dito pelos professores. Moeda de troca para conseguir que alguns dos que tinham ido para a tropa pudessem regressar, o encontro, visto como um pedido de desculpas, foi muito mal aceite por um movimento estudantil que, entretanto, começava a radicalizar-se e a assumir mais abertamente a oposição ao regime.