Mudar a universidade: endogamia e ética
O factor que mais tem contribuído para a estagnação do ensino superior é a endogamia
A endogamia das universidades portuguesas - isto é, o princípio da reprodução interna do seu corpo docente - tem-se mantido inabalável. E tem sobrevivido a todas as reformas. Se há excepções, é porque confirmam a regra.A instituição da endogamia é o maior travão à inovação, o factor que mais tem contribuído para a estagnação do ensino superior, para a sua incapacidade de responder com criatividade aos desafios que a realidade lhe coloca. Um exemplo, com particular actualidade, é a persistente recusa em abrir concursos públicos para o recrutamento de professores auxiliares. Cada vez há mais bolseiros doutorados, mas as universidades continuam a ignorá-los e a recrutar por convite (ou a integrar automaticamente) só aqueles a quem elas próprias conferiram o grau (ou, pior: convidam quem nem tem o grau, nem um estatuto compatível de especialista de excelência).
Este espírito corporativo contrasta com as práticas desde há muito dominantes noutros países. Em alguns, como se sabe, o recém-doutorado nem sequer pode ser recrutado imediatamente pela universidade em que se doutorou. Primeiro, porque o doutoramento confere várias saídas profissionais, não havendo a presunção de que o novo doutor se torne especialmente apto, apenas por efeito do grau, para a carreira docente. Segundo, porque cada universidade tem interesse em captar os melhores, alargando o mais possível o universo de potenciais candidatos (em concursos internacionais). Terceiro, porque a experiência mostra que só pode haver renovação e qualificação científico-pedagógica no quadro de uma cultura de rede que favoreça a mobilidade a todos os níveis.
Mas a ausência de uma cultura de rede afecta muitos outros aspectos do sistema universitário português. Começa à escala interna de cada universidade, cujas faculdades funcionam como compartimentos estanques. Que mobilidade existe, para estudantes do primeiro, segundo e terceiro ciclos, por exemplo, entre Economia, Direito e Sociologia, se as áreas forem cobertas pela mesma universidade, mas em escolas ou departamentos, diferentes? Que oferta curricular comum existe? Que cruzamentos, que articulações, ao nível docente e discente? A endogamia manifesta-se aqui no ciúme corporativo quanto ao monopólio da doxa.
Mas há ainda a dimensão mais patológica do corporativismo - uma espécie de degenerescência do sistema causada pela endogamia: as lutas internas de grupo, pelo favorecimento de uns, à custa de outros, sem olhar a critérios de mérito relativo. Exemplos não faltam.
Em casos especialmente escandalosos, tem-se dado como provado em tribunal que há membros do júri - precisamente os da casa - que, com o intuito de favorecer um candidato em detrimento de outro, fazem tábua rasa das grelhas de avaliação que o próprio júri aprovara (aliás, consensuais na academia). Os tribunais ordenam a anulação do concurso. Mas daí à reposição da legalidade vai uma grande distância. Os anos correm: três, quatro, cinco, seis anos. E o preterido continua preterido...
É preciso que o novo estatuto das carreiras do ensino superior blinde as universidades contra tais práticas e situações. É preciso também que, nos seus novos órgãos de governo, se passe a uma atitude pró-activa de defesa da legalidade e da ética, em vez de se pactuar com a inércia do sistema e os seus vícios. Professor universitário