Do contrabando de volfrâmio à ilegalização do Movimento de Unidade Democrática

Nada escapava ao domínio de Oliveira Salazar. O PÚBLICO consultou alguns processos que atestam esse hábito centralista

a Em Janeiro de 1944 a PVDE envia para a Presidência do Conselho de Ministros (PCM) um relatório sobre o roubo de volfrâmio nas Minas da Borralha, no concelho de Montalegre. Nesse documento a polícia política informa a PCM que a maior parte da produção das minas destina-se à Grã-Bretanha. Mas logo a seguir cita uma queixa da Direcção-Geral das Minas da Borralha sobre o "desvio" do minério para "um couto ao lado", propriedade de alemães. Nota a PVDE que, depois de "desviado" para o "couto mineiro de Dornelas", o volfrâmio é transportado para Braga e para Vila Real, "coberto com guias de trânsito" e "vendido aos alemães". O roubo é feito com a colaboração do proprietário das minas, o francês Gilbert Max Regert. Este confessa isso mesmo à PVDE num interrogatório em que "chorou" e pediu a fixação da residência em Portugal - de preferência "numa praia, a Praia da Rocha". Salazar terá ficado sensibilizado com a situação de Regert e deferiu o pedido de residência do dono das minas. Desconhece-se, porém, se acedeu à escolha da Praia da Rocha. Este é um dos processos que consta das 2827 pastas do arquivo da PCM e, apesar de se tratar de um assunto relevante para a época (período da II Guerra Mundial), demonstra que Salazar chamava a si todas as decisões. A documentação sobre os "fatos de banho inconvenientes" é um bom exemplo disso mesmo. Em Julho de 1940 chega à PCM uma carta do ministro da Marinha, Manuel Ortins de Bettencourt, em que este dá conta de queixas de atentados contra "a moral e o sentimento da maior parte dos portugueses" nas praias do país. Escreve o ministro que é necessário "fixar critérios quanto ao feitio dos fatos" de banho, uma vez que "muitos estrangeiros" que se refugiaram em Portugal "trouxeram os hábitos e o vestuário exageradamente livres, em uso nas suas terras". O caso mais flagrante acontece na Figueira da Foz, prossegue. Em anexo surge, porém, uma petição assinada por banhistas do Estoril que reivindicam o "uso do calção".
E algumas páginas adiante lá vem a decisão de Salazar: o presidente do Conselho concede poderes ao ministro do Interior, Mário Pais de Sousa, para uma "intervenção rápida e imediata". A saber: aumento do contingente de cabos do mar "com formação em línguas", intervenção da PSP e a proibição da venda de fatos de banho "não completos".
Neste arquivo que abrange 19 anos da história do Estado Novo há várias pastas que indicam processos sobre presos políticos e petições para amnistias para crimes políticos. Num deles verifica-se, através da leitura da carta do secretário do gabinete da PCM para a PIDE, que em Maio de 1952 o próprio Governo enviou para polícia política uma cópia de uma petição, assinada por familiares e amigos de presos políticos, a pedir uma amnistia para os detidos. "Não admira que existam seis milhões de fichas da PVDE e da PIDE", comenta Silvestre Lacerda.
Num outro processo, intitulado Amnistia por crimes políticos e pedido de indivíduos ligados ao PCP, encontra-se uma carta da PIDE para Salazar, datada de 12 de Dezembro de 1950. Nela, a polícia informa o presidente do Conselho sobre elementos da "associação secreta subversiva [PCP]" que andam a recolher assinaturas para pedir uma amnistia aos presos políticos, invocando a "quadra do Natal" e invocando os "sentimentos católicos e cristãos da gente portuguesa".
Nem todas as pastas que compõem o fundo são vermelhas. Também há castanhas e pertencem ao Ministério da Economia - que, de 1941 a 1942, remetia para a PCM mapas semanais sobre a actuação das "brigadas de repressão do comércio ilícito de mercadorias". Nestes mapas estão identificadas as zonas de acção das brigadas, os actos ilegais ("exportação ilícita", "açambarcamento", "especulação", "falta de etiquetas de preços dos géneros"), os infractores, a natureza dos produtos apreendidos e as coimas aplicadas.
Também uma parte do processo de ilegalização do Movimento de Unidade Democrática (MUD), em 1948, consta deste arquivo: estão lá o despacho original de Salazar, datado de 21 de Abril, no qual se ordena a entrega em tribunal de uma lista de filiados no PCP e em "outras organizações clandestinas" que faziam parte da direcção do MUD; a carta do chefe de gabinete da PCM, José Manuel Costa, a António Sérgio dando-lhe conta do despacho de Salazar; e ainda o abaixo-
_assinado original contra a ilegalização do MUD, assinado por Sérgio, Maria Lamas, Bento de Jesus Caraça, Mário Soares, Tito de Morais e Maria Isabel Aboim Inglez, entre outros.
O abaixo-
-assinado contra a ilegalização do MUD, assinado, entre outros, por Mário Soares, faz parte do arquivo descoberto

Sugerir correcção