Torne-se perito

Seteais

Já é possível voltar a viver uma noite de luxo no Tivoli Palácio de Seteais. Depois de um ano de obras, com o restauro completo de 1700 peças de mobiliário e a recuperação das pinturas murais por todo o palácio feitos pelos técnicos da Fundação Ricardo Espírito Santo, o hotel está de novo aberto ao público. Por Alexandra Prado Coelho (texto) e Daniel Rocha (fotos)

a Há ainda restos de folhinhas de ouro a esvoaçar pelo chão da ala nova do Palácio de Seteais, em Sintra. Na ala antiga, o Hotel Tivoli já voltou à sua azáfama habitual, há uma reunião a decorrer no salão, na sala de refeições as mesas estão postas e os empregados começam a trazer o buffet, há flores frescas em todos os quartos. Ao fim de um ano de profundas obras de restauro e requalificação, a ala mais antiga do hotel reabriu no dia 10 de Março e a nova está prestes a reabrir. Quem atravessar o corredor que liga as duas alas vai encontrar na nova, para além dos esvoaçantes pedacinhos de ouro, homens e mulheres de batas brancas, andando apressadamente de um lado para o outro.
São alguns dos mais de 40 técnicos de conservação e restauro da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva (FRESS) que nos últimos meses invadiram o palácio para restaurar mais de 1700 peças de mobiliário do século XVIII, das porcelanas às tapeçarias, das madeiras embutidas dos móveis às pinturas murais que cobrem praticamente todas as paredes do palácio construído para o cônsul holandês Daniel Gildemeester, num terreno cedido pelo marquês de Pombal.
O trabalho é de enorme minúcia. As finíssimas folhas de ouro, que se desfazem ao toque, são colocadas nas portas criando frisos de alto a baixo. Por todo o lado o palácio parece ter recuperado uma luminosidade há muito perdida. As pinturas parecem saltar das paredes com uma vida nova, a luz que entra pelas janelas reflecte-se por todo o lado como antes não conseguia. Afastadas as cortinas brancas que esvoaçam nas janelas dos quartos vêem-se os jardins, o dos buxos, de um lado, o dos limoeiros do outro, a piscina deserta neste dia que ameaça chuva, e mais ao longe o mar, de um dos lados, e a serra de Sintra do outro, com o Castelo dos Mouros e o Palácio da Pena.
Investimento de 6,5 milhões
Foi um investimento de 6,5 milhões de euros o que os Hotéis Tivoli fizeram neste restauro e recuperação de um palácio que mantiveram inalterado - o mobiliário é o mesmo, as pinturas murais (que incluem os frescos da Sala Pillement, decorada pelo francês Jean-Baptiste Pillement a convite do cônsul holandês) são as originais, assim como os objectos de decoração (se exceptuarmos, obviamente, algumas cedências ao conforto moderno, da televisão com ecrã LCD às máquinas de café que existem em todos os quartos). O trabalho da Fundação Ricardo Espírito Santo corresponde, segundo o presidente da instituição, Luís Calado, a cerca 700 ou 800 mil euros do orçamento total.
Se as pinturas das paredes e as portas de frisos dourados têm que ser trabalhadas aqui, as peças de mobiliário puderam ser levadas para Lisboa para as oficinas da Fundação Ricardo Espírito Santo, no Largo das Portas do Sol. É aí que entramos agora, numa completa mudança de cenário, do Palácio de Seteais para o Palácio Azurara, em Alfama, junto à muralha da Cerca Moura (cujo pedaço maior pode ser visto a partir de um pátio do palácio).
A visita é guiada por Conceição Amaral, directora há pouco mais de um ano do Museu de Artes Decorativas Portuguesas, a colecção reunida por Ricardo Espírito Santo Silva, o homem a quem chamavam "Príncipe da Renascença", e mais tarde doada ao Estado português, em conjunto com o palácio de raiz seiscentista comprado e restaurado em 1947 com a colaboração do arquitecto Raul Lino.
As oficinas são pequenos mundos que durante muito tempo estiveram quase escondidos atrás de várias portas do Palácio Azurara. Mestres em artes muito antigas, algumas perto de virem a desaparecer completamente, trabalham, com muita paciência e uma magnífica vista do Tejo ao longe, a madeira, o couro, a folha de ouro.
A batedora de ouro
Encostada a uma bancada, Helena Santos está a chifrar um pedaço de pele. "Tem que se desbastar até à flor da pele", explica, demonstrando como se deve raspar com a chifra, com firmeza para diminuir o volume da pele, mas sem lhe provocar o mais pequeno dano. O couro tem que ficar suficientemente fino para poder envolver o cartão que serve para encadernar livros.
Ao lado de Helena está uma mulher de rosto largo e calmo, vestida com uma bata branca. É Fernanda Oliveira, que Conceição Amaral apresenta como "a única mulher batedora manual de ouro da Europa". Fernanda explica que "é uma arte que vem do meu avô e que ia acabar" quando Ricardo Espírito Santo decidiu convidar o mestre para integrar as oficinas da fundação. É com esse material, os pesados martelos que herdou do avô e do pai, que Fernanda continua hoje a bater o ouro até conseguir as folhas mais finas, as "que ficam entre o estado sólido e o líquido". Para vermos se está no ponto certo, explica, "levantamos a folha ao alto e vemos se está azul, aí não é preciso bater mais".
Vai buscar um pequeno livro que tem entre as páginas uma dessas folhas de ouro. Pega numa ponta e esta desfaz-se entre os dedos. Para lidar com ela, Fernanda sopra, para a fazer levantar e virar. É este material fragilíssimo que vai ser usado pelas colegas que estão na sala ao lado a gravar as lombadas e capas dos livros. Com um sistema semelhante ao das antigas tipografias, as letras são alinhadas para formar o título e são gravadas no couro. Só depois é aplicada a folha de ouro, também gravada a quente.
Fernanda abre uma vitrina e tira um modelo de uma caixa para livros que foi oferecida à rainha da Suécia na sua visita a Portugal. Conceição Amaral mostra depois a pedra de ágata que é usada para brunir as folhas do livro que são douradas no exterior. Por todo o lado à nossa volta há ferramentas únicas, preciosas, como a enorme colecção de ferros de decoração, com delicadíssimos desenhos, que vão do século XVI ao XIX, e que eram propriedade da "senhora Josefina", uma catalã que tinha atelier em Lisboa e que foi também convidada por Espírito Santo para se juntar às oficinas.
Um dos muitos projectos de Conceição Amaral para aquela que a direcção quer que seja a nova vida da fundação é criar lojas técnicas que vendam este tipo de ferramentas, que já não se encontram em Portugal. Outro - já em prática - é renovar a linha de produtos que se vendem na loja do museu (aberta desde o ano passado), mostrando que com as técnicas antigas usadas nas oficinas é possível fazer objectos com linhas mais modernas (e preços mais acessíveis), como as colheres de chá de prata com cabos de madeira com embutidos ou as papeleiras de couro de cores diferentes do tradicional vermelho ou verde gravado a ouro.
Reconhecendo que permaneceu tempo de mais fechada ao exterior, a fundação começou já abrir as portas, tirando partido de tudo o que pode - desde o facto de ter um pedaço da Cerca Moura no seu interior, como do de poder mostrar nas oficinas um trabalho único (por isso as visitas ao museu foram alargadas para incluir algumas das 18 oficinas), passando pela cedência das salas do palácio para eventos. Foram também convidados artistas plásticos - para já Teresa Pavão e Margarida Lagarto - para criarem peças a partir dos materiais usados nas oficinas. E, no projecto Laboratório, outros 12 artistas vão, em 2010, "invadir o museu" com as suas instalações, espalhadas entre as peças da colecção.
As oficinas são, sublinham os responsáveis da fundação, a grande mais-valia oferecida aos alunos das duas escolas da FRESS, a Escola Superior de Artes Decorativas e o Instituto de Artes e Ofícios. Na oficina de talha, a trabalhar na reprodução de peças do museu para serem vendidas na loja, está José Durão. Falta pouco para acabar o segundo de dois relicários, um trabalho que lhe leva já três meses. Durão é, percebe-se logo, um apaixonado pelo que faz.
Lança-se imediatamente na explicação de como são feitas algumas das goivas que lhe enchem a bancada. "Algumas são feitas a partir de varetas de chapéus-de-chuva antigos, porque o aço era muito bom, esta aqui é adaptada de uma agulha de coser couro". São instrumentos que lhe chegaram de outros mestres ou que ele próprio faz, mas que "não existem no mercado".
Depois explica que no trabalho de talha "não se deve usar lixa, porque quebra as arestas". E pega no relicário em que tem estado a trabalhar, para exemplificar. Está aqui desde 2000, nesta sala sossegada junto a Alfama e ao Castelo, no edifício vermelho em frente ao qual passam diariamente muitas centenas de turistas.
O que Conceição Amaral quer é que mais turistas (que são a maioria dos visitantes) conheçam o museu e as oficinas, que os portugueses descubram também o palácio, que os habitantes de Alfama e os familiares dos mestres que ali trabalham entrem, conheçam, descubram algumas e tragam outras velhas técnicas e formas de fazer que estão cada vez mais em risco de se perder.
E o que a fundação espera é mais oportunidades como a de Seteais. Quando, em breve, os últimos técnicos saírem, os 30 quartos do palácio estarão de novo completamente operacionais para uma noite de luxo. Quem quiser ir espreitar o hotel renovado, jantar no restaurante do chef Luís Baena ou descobrir o que são as experiências que o Tivoli oferece sob o novo conceito Experience More, fica a saber que um quarto duplo custa entre os 355 e os 455 euros. Mas com o Best Available Rate (consulta no site), os preços podem tornar-se mais acessíveis (para hoje, por exemplo, 280 euros).

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