É quase uma ironia, mas aconteceu assim: Aldina Duarte entrou no mundo do fado por causa de um documentário que não chegou a ser feito. Agora, já fadista, foi ela mesma objecto de um, realizado por Manuel Mozos e programado para estrear no IndieLisboa (dia 26, às 21h45, na sala 1 do São Jorge).
Porquê Mozos? Aldina cantara já um fado no seu filme "Xavier", em 1991, e foi com ele que foi pela primeira vez a uma casa de fados, em 1993, com o objectivo de preparar entrevistas com Beatriz da Conceição, Celeste Rodrigues e Fernando Maurício (que entretanto morreu). Encantou-se de tal modo ao ouvir cantar Beatriz da Conceição que se tornou, ela própria, fadista. Quanto aos documentários, que seriam realizados por Jorge Silva Melo, não chegaram a ser feitos. E foi Aldina quem veio a figurar num, "Princesa Prometida", assinado por Mozos.
"Para mim é muito estranho, porque não fiz nada para que isto acontecesse. A Maria João Seixas, que ainda não conhecia pessoalmente, foi apresentar uma das quintas-feiras de leitura, no Porto, no Teatro Campo Alegre. A primeira parte era dedicada à poesia da Maria do Rosário Pedreira (eu não a conhecia mas já era fã, tinha ouvido as duas letras que ela escreveu para o último disco do Carlos do Carmo) e na segunda parte ia eu cantar fados, porque me convidaram."
Dada a coincidência, Aldina pediu a Rosário Pedreira que lhe escrevesse então uma letra para ela estrear lá, o que veio a acontecer (foi "O amor não se desata", que entrou depois no disco "Mulheres ao Espelho"). Mas o pretexto para o filme veio depois. "Num jantar, estávamos a falar sobre política e eu não fui politicamente correcta. A Maria João Seixas achou extraordinário e disse que se tivesse um programa de entrevistas me entrevistava naquela altura. Porque, disse ela, a minha vibração infantil-adolescente com a minha idade era uma coisa rara."
Passados três meses, apareceu-lhe com a ideia do documentário, já com tudo tratado. Como fio condutor haveria uma noite de fados no Palácio Fronteira e uma entrevista com Aldina, que foi feita em casa dela, na Madragoa ("Foi a primeira vez que abri assim a minha casa, porque era a pessoas minhas amigas. Mas fez-me impressão e não quero voltar a fazê-lo").
O concerto foi gravado em Dezembro de 2007 e as filmagens consumiram uma semana de Fevereiro de 2008. Além disso, ela tinha que escolher os percursos e as pessoas que queria integrar no filme. "Escolhi só duas: uma que tem a ver com a minha vida pessoal, que é a minha mãe; e outra ligada ao meu trabalho, o Jorge Silva Melo, que é a pessoa com quem eu acho que aprendi mais profissionalmente."
A conversa com Silva Melo decorre no Largo do Carmo, numa feira de livros usados, enquanto a conversa com a mãe decorre no Jardim Tropical, junto a uma árvore enorme. "Sempre achei que aquela árvore era a minha mãe. Pelas raízes tão visíveis, tão fortes."
Do cinema mudo a Olga Roriz
Olhar-se no ecrã ou na tela é coisa que lhe faz impressão. "Eu tenho sempre medo destas coisas porque não me quero tornar bizarra. Não quero tornar-me, eu, Aldina, mais importante do que o meu trabalho. Há pessoas que adoram as minhas entrevistas mas não gostam do meu trabalho, por exemplo."
Já viu o filme três vezes, mas nunca sozinha. Não é capaz. Aquilo que deu origem ao documentário, o encontro no Porto com Rosário Pedreira e Maria João Seixas, em Junho de 2007, foi também aquilo que deu origem ao disco "Mulheres ao Espelho", gravado em Dezembro de 2007, lançado em 2008 e que só agora vai estrear na Culturgest (dia 22, às 21h30). É do disco o fado escolhido para titular o filme, "Princesa prometida", onde Aldina escreveu: "Espelho meu que aconteceu/ do que é teu e do que é meu/ já não temos a certeza."
Toda a história do filme, aliás, diz Aldina, "anda à volta da temática do disco." Do filme, Aldina espera que quem o vir retenha o essencial: "Que vale a pena tentarmos negociar as nossas revoltas com os nossos amores; que independentemente da nossa origem vale a pena manter sempre a consciência de classe, mas acreditando e fazendo o que está na nossa mão para melhorar a nossa vida e as dos que nos rodeiam; que a cultura e o conhecimento podem ser salvação para muitos males."
Do disco, ao pô-lo em palco, deixará de fora os fados que não são criação sua, excepto um, "Não vou, não vou", de Lucília do Carmo. "Porque define todos os meus medos e toda a minha coragem." E abrirá a noite com "Lírio Quebrado", do seu primeiro disco, que tem a ver com os tempos em que trabalhou na Cinemateca e se apaixonou pelo cinema mudo.
Com o espectáculo e o filme em estreia quase simultânea, vai já somando novos fados que lhe chegam. Amélia Muge prometeu-lhe um, Manuel João Vieira já fez dois (só música), Paulo de Carvalho gravou-lhe um original e José Mário Branco ofereceu-lhe, pela primeira vez, um fado seu, novo, com letra de Manuela de Freitas, "Apenas o Vento". "Eles sabem que eu adoro o vento. É das coisas que mais me acalma, como tudo o que é bravo, como o mar. Sou tão inquieta e tão agitada interiormente que é preciso algo mais forte para eu relativizar as coisas. Uma espécie de vassoura."
Ela não planeia, mas as coisas vão acontecendo. Anteontem cantou nos Açores com António Zambujo (está a escrever para o novo disco dele); voltará ao Porto para cantar no Campo Alegre; em Junho, cantará no Castelo de São Jorge, em Lisboa, ao lado de Maria do Rosário Pedreira, Manuel Paulo e Nancy Vieira; já tem convites para cantar na "Festa do Avante!" e no Teatro Azul de Almada. "E em 2010 vai realizar-se o sonho da minha vida." Disse ao Jorge Salavisa que gostava muito que alguém da área do bailado desse corpo aos fados de "Mulheres ao Espelho". Esse alguém já existe e chama-se Olga Roriz. O espectáculo, "Aldina por Olga Roriz", estreia-se em Julho de 2010.