Pais e filhos

Usa-se muito o termo "americana" para descrever os filmes que exploram recantos ou elementos da cultura (mais ou menos) popular americana. É curioso como ainda não se encontrou um termo idêntico para Inglaterra, onde, contudo, essa exploração da cultura popular está tão ou mais enraizada que nos EUA. "Isto é Inglaterra" assume sem problemas esse lado de "britanniana", num esforço que, de modo tipicamente inglês, não enjeita a sinceridade da memória mas introduz um distanciamento crítico, muito pouco sentimental, até um pouco altaneiro.


Porque "Isto é Inglaterra" é um daqueles filmes que não se encaixa numa única gaveta. É uma história iniciática sobre um adolescente que aprende a ser adulto durante um Verão específico - mas Shaun, o miúdo de doze anos espantosamente interpretado pelo estreante Thomas Turgoose, pode ser o único miúdo de doze anos do filme mas não é o único adolescente da história, nem o único que anda à procura de um pai.

É um drama social, daqueles que os ingleses sabem fazer como ninguém, mas não abafa a narrativa nem as personagens em nome do problema que aborda. É um filme de época, mas não é de época apenas por nostalgia ou facilidade, e usa a sua época como um modo de falar de coisas universais e intemporais.

Precisamente por isso, acaba por não ser problemático que o filme chegue a Portugal com dois anos de atraso (rodado em 2006, estreou em Inglaterra há dois anos e por todo o mundo durante 2007): a sua história de um miúdo à procura de um pai e, por extensão, de si mesmo continua a ser uma das histórias-chave da narrativa cinematográfica contemporânea. O que Shane Meadows faz dela e com ela, contudo, é o que faz do filme uma pequena jóia multi-facetada.

Estamos em Julho de 1983, Shaun acaba de perder o pai na Guerra das Malvinas, a mãe não tem tempo para lhe dar, os miúdos mais velhos passam o tempo a meter-se com ele na escola, os únicos que lhe prestam atenção são um grupo de skinheads locais que o adoptam como "mascote" e dão ao miúdo que se sente sozinho a sensação de ter encontrado o seu lugar no mundo. A tribo não é política (há até um negro entre eles): a tribo é social, um modo de abrir espaço para o seu lugar num mundo cão que não abre espaço para quem não entra na linha. Tudo se complica para esta meia-dúzia de miúdos porreiros e despreocupados, skinheads "boa onda" que ouvem soul e ska e seguem os velhos códigos da tribo, quando Combo, o líder original (uma performance assombrosa que equilibra vulnerabilidade e agressividade de Stephen Graham), regressa da prisão e começa a espalhar a ideologia nacionalista e racista que aprendeu lá dentro.

De repente, sem deixar de ser uma história de filhos à procura de pais, de figuras masculinas que lhes sirvam de modelo, "Isto é Inglaterra" começa a falar de racismo, de fanatismo, de violência e mostra graficamente a sua origem sem nunca precisar de carregar a traço grosso, explica a distância que vai da imagem à verdade, da fachada ao que vai na cabeça. A tribo é um modo de libertar adrenalina, de deitar cá para fora a energia contida e reprimida de gente que ainda está à procura da sua identidade e que não tem plena consciência do que está a fazer nem dos sacos de gatos que está a abrir.

De repente, Meadows, que não convencera ainda com nenhuma das suas quatro anteriores longas (distribuídas irregularmente por cá), arranca de uma história simples que podia cair na boa intenção convencional da "problem picture" e do melodrama social um filme notável. Que ressoa com a história recente inglesa, reflecte todo o eterno existencialismo adolescente à procura do seu lugar no mundo e o liga a questões muito maiores, fala por portas travessas do mundo de hoje falando do mundo de há 25 anos. Sem nunca perder de vista que é a história de um miúdo de doze anos que perdeu o pai na guerra.

Num momento em que tão pouca coisa de interesse está a estrear em Portugal, deixar passar ao lado um filme em estado de graça como "Isto é Inglaterra" é criminoso.

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