Até que a crise nos separe (ou não)
a João está desempregado há três meses. Fica por casa, procura emprego, vai a entrevistas, sente-se mal, muito mal e às vezes não sabe onde vai arranjar forças para sorrir aos filhos, de cinco e dez anos, quando vai buscá-los às escolas. As discussões com a mulher Ana são constantes. Ele sente-se inútil, ela faz questão de lhe lembrar isso mesmo, de cada vez que João lhe pede dinheiro.Nunca o tema "dinheiro" teve tanta importância como nos últimos meses. A crise económica entra pela casa e pela vida das famílias, seja através da televisão, seja porque os casais sentem na pele o desemprego ou a quebra de rendimentos. Há mais casais a recorrer à terapia familiar por causa da crise económica ou da má gestão do seu dinheiro? Os psicólogos e terapeutas familiares dizem que sim. Embora reconheçam que o dinheiro sempre fez parte das discussões dos casais.
O que fazer quando um dos membros do casal está desempregado? Como gerir o pagamento da casa, do carro, dos colégios, dos tempos livres, da empregada? E mesmo quando não há todas estas despesas, como gerir a ansiedade e a frustração daquele que está desempregado com a possível atribuição de culpas e de responsabilidades do que mantém o emprego? Estas são as principais questões que as famílias levam para o consultório e se pedem ajuda é porque querem que os seus casamentos resistam à crise, dizem os especialistas.
Aumento de consultas
Segundo Catarina Rivero, psicóloga e terapeuta familiar, neste momento "o tema dinheiro começa a ter maior importância" nas consultas. Também Cláudia Morais, psicóloga, confirma que os pedidos de ajuda começam a ser superiores e que já surgem casos em que marido e mulher estão ambos desempregados.
João e Ana são nomes fictícios para um casal que está a ser acompanhado por Cláudia Morais. "O pedido de ajuda é feito por dificuldades associadas ao desemprego. Os casais confessam que, por mais que se tentem apoiar, acabam por discutir", conta a terapeuta.
Por vezes, o membro do casal que continua a trabalhar sente-se sobrecarregado e, "mais tarde ou mais cedo, acaba por achar que o elemento desempregado não está a fazer tudo o que podia para resolver a situação", explica Vasco Catarino Soares, director da Insight Psicologia e Recursos Humanos. Se o desempregado faz gastos supérfluos, o que trabalha sente-se explorado, exemplifica.
Quando há uma situação de desemprego é necessário redefinir os limites para equilibrar as finanças familiares e também a relação do casal, aconselha Marta Pietra, psicóloga clínica do consultório Linhas Dinâmicas, em Lisboa. "A forma como o que está a trabalhar gere a situação tem todo o valor para o outro. É preciso estar a atento a sintomas depressivos por parte do que está em casa", alerta.
Mas não é só o desemprego que leva as famílias a pedir ajuda. Por vezes há casos de má gestão do dinheiro, notam a Marta Pietra e Vasco Catarino Soares.
Afonso e Mariana são um desses casos. Na casa dos 30 anos e sem filhos, ambos são quadros superiores, têm contas bancárias separadas e uma conjunta que invariavelmente está a descoberto por causa dos gastos dela. Afonso não suporta as despesas e as mentiras que Mariana inventa para esconder o dinheiro que gasta.
O dinheiro é motivo de discussão quando um dos membros do casal ganha mais do que o outro e defende que deve ser ele a decidir sobre as principais despesas. Às vezes, o controlo e a pressão que, por exemplo, o marido exerce sobre a mulher por causa das despesas é enorme e feita na tentativa que esta pense da mesma maneira que ele. Ou vice-versa, porque também há mulheres que querem que os maridos sejam mais poupados e tenham a mesma atitude que elas face ao dinheiro.
A crise financeira, o desemprego, a falta de dinheiro condicionam a comunicação na família, constata Cláudia Morais. Por vezes, "as pessoas não estabelecem causalidade linear porque não atribuem à crise a culpa dos problemas", acrescenta.
Mudança de paradigma
Falar sobre dinheiro, mesmo num casal, pode ser uma questão muito sensível e difícil de abordar, explica Catarina Rivero. Mas que deve ser discutida, aconselha. "Não há casais que não discutam [seja qual for a razão]. Os saudáveis discutem e resolvem os problemas", garante Marta Pietra.
O modo como se gere o conflito varia com a idade e com o tempo de duração da relação, apontam os especialistas. Que o digam os casais mais velhos que já ultrapassaram crises anteriores. É por essa razão que têm mais sucesso, ao passo que os mais novos têm menos maturidade afectiva, caracteriza Marta Pietra.
Os mais velhos foram educados para a economia e a poupança, "ganhando uma certa resistência aos contextos de crise", avalia Vasco Catarino Soares. "Para os casais mais jovens, os estímulos são outros e têm mais dificuldade em lidar com frustrações como a instabilidade profissional", justifica Cláudia Morais.
O consumo, o sucesso, o estatuto social, o apartamento, o carro e a roupa de marca são tudo sinónimos de felicidade, "algo muito diferente de ter relações gratificantes e esta crise vem pôr tudo isso em causa", diz Catarina Rivero, para quem, no seio das famílias, "a crise pode ser positiva, fazer com que parem e pensem que o seu paradigma pessoal tem que ser mudado".
A crise une ou separa? Há famílias que respondem bem, reforçando a sua união, mas "na maior parte dos casos a resposta é disfuncional", revela Cláudia Morais. E aqui não há questão geracional que salve a relação: "Nos casais mais novos a tendência será mais para separar. Nos mais velhos para aguentar. Mais raramente, tanto num caso, como no outro, para unir", afirma Vasco Catarino Soares.
Se o casal conseguir "redefinir os limites", pode ultrapassar a crise junto. Se já tinha fragilidades, a crise económica como factor de stress exterior pode abanar essa realidade, mas, "às vezes, há casais que passam por situações muito complicadas e conseguem", observa Marta Pietra.
O segredo para ultrapassar a crise em família está na "coesão, no reforçar da amizade profunda, no manter a cumplicidade, o romantismo, o respeito e a ligação forte entre o casal", receita Catarina Rivero. O problema é quando "as pessoas estão afastadas e mais focadas no ter do que no ser", lamenta. A probabilidade de ultrapassar a crise com sucesso está "dependente da conta bancária emocional: quanto maior for, maior a probabilidade de sucesso", acrescenta Cláudia Morais.
O que fazer?
Os conselhos para salvar a relação são muitos: avaliar a capacidade financeira da família, fazer contenção de custos, definir as despesas e não ultrapassá-las, enumera Marta Pietra. Não partir do princípio que a culpa é do outro, "tudo no casal depende, seja visível ou não, de ambos", sublinha Vasco Catarino Soares.
Investir na comunicação, ser claro e honesto naquilo que pensam e dizem, mas "sem humilhar o outro, respeitando os silêncios de reflexão e a introspecção do outro", recomenda Cláudia Morais. Continuar a ver no outro o companheiro, a pessoa com a qual, em conjunto, tem de se encontrar a solução.
E pedir ajuda, recomendam os quatro especialistas. São cada vez mais os casais e as famílias que o fazem, "o que é um sinal de que querem ficar juntos", conclui Catarina Rivero.