Clarice e seus olhos de piscina

Como fazer a biografia de Clarice Lispector, que toda a sua vida baralhou as datas? A investigadora Nádia Battella Gotlib passou por Lisboa e explicou as dificuldades de que é feita a fotobiografia de uma escritora que se “ficcionalizou”.

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Eram os anos 40 e o poeta brasileiro Manuel Bandeira estava numa “tristeza danada” por causa de uma mulher. Saiu do Praia Bar, no Flamengo, e quando ia “na calçada” encontrou a jornalista e escritora Clarice Lispector, que passeava de braço dado com o seu noivo, Maury.

O poeta fica impressionado com “os olhos da moça”. E contou este episódio ao jornalista Rubem Braga que não perdeu tempo e escreveu uma crónica, O poeta e os olhos da moça, que começa assim: “Conversa vai, conversa vem, eu disse um nome de uma mulher. O poeta me confessou que há muitos, muitos anos, tem vontade de fazer um poema sobre uma história que ele teve com essa mulher a que chamaremos Maria. Espanto-me: não sabia que o poeta tinha tido alguma história com a Maria. Ele ri: ‘- Não pensa que eu tive um caso com ela. Foi apenas uma impressão minha, foi uma coisa tão subjectiva - mas inesquecível. (...) Quando vou pisando na calçada me encontro com Maria, que vem de braço dado com o noivo. Meus olhos entraram directamente nos seus. Meus olhos, com toda a minha tristeza, toda a minha alma desgraçada, entraram de repente nos seus, mergulharam completamente neles. Ela se deteve um instante - eu só via aqueles olhos verdes - e me recebeu como se fosse uma piscina(...).’” Quando Rubem Braga contou esta história a Clarice Lispector, ela não se conseguiu recordar desse encontro e olhou-o, “admirada, com os seus olhos de piscina”.

Para a professora universitária de literatura brasileira Nádia Battella Gotlib, autora da biografia Clarice, uma vida que se conta (1995) e mais recentemente da Fotobiografia Clarice (2008), esta é uma das melhores histórias que já ouviu sobre a escritora brasileira. Este encontro entre Manuel Bandeira e Clarice Lispector (1920-1977), contado por Rubem Braga, é aliás citado em Fotobiografia Clarice (ed. Edusp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo), cuja edição revista e aumentada saiu agora no Brasil e irá estar à venda em Portugal, onde Gotlib acaba de a lançar, no âmbito do cóloquio Clarice Lispector, que decorreu na Casa Fernando Pessoa (1 e 2 de Abril).

Como os detectives

A crónica que fala do poeta que se depara com uma mulher “em plena mocidade, em pleno esplendor de beleza e de felicidade” quando ele “estava na fossa” é um dos “melhores depoimentos” sobre Clarice na sua juventude. Rubem Braga só revelará a verdadeira identidade dos envolvidos nesta história - o verdadeiro nome de Maria dos olhos de piscina e do poeta - depois da morte de Lispector.

Foi também por vontade expressa da escritora que só foi tornado público depois da sua morte o único registo audiovisual que dela existe. Trata-se da entrevista que deu a Júlio Lerner, do programa Panorama Especial, onde com a sua voz, a “fala presa”, diz que faz questão de ser uma escritora “amadora” para manter a sua liberdade.

O trabalho de biografar Clarice Lispector é quase “detectivesco” porque a escritora brasileira de origem ucraniana fazia “questão de despistar” e de “sumir com sinais”. “A pesquisa de Clarice vai sempre caminhando, apesar da Clarice”, diz Nádia Battella Gotlib.

Enquanto preparava as aulas que dava na universidade e ia lendo a obra de Clarice, a professora começou a guardar imagens em pastas com a ideia de, um dia, as organizar. Eram imagens “xerografadas” retiradas de jornais e revistas a que se juntaram depois as imagens que encontrou nos acervos fotográficos de Clarice (na Fundação Casa Rui Barbosa e na casa do filho de Clarice, Paulo Gurgel Valente). Gotlib queria saber quando foi tirada determinada fotografia, em que circunstância e o que é que a autora estava produzindo naquele momento.

“Na realidade era um olhar meio sonhador tentando arrumar o material. Porque os estudiosos de Clarice que começaram nos anos 80 tinham um problema danado: nada batia em termos de datas. Ela ia mudando a data do nascimento em função do envelhecimento.” Num depoimento a escritora disse uma vez: “Nasci na Ucrânia. Quando? Não, não quero dizer.”

Nádia percebeu então que, para fazer “o histórico de Clarice”, teria que ir fazer uma pesquisa de campo. Começou a viajar. Foi para Recife e para Maceió, foi às escolas onde ela estudou procurar a documentação.

Grande ambiguidade

Foi também aos lugares onde Clarice viveu : Ucrânia, Itália, Suíça, Inglaterra, Estados Unidos (Clarice esteve 16 anos fora do Brasil). A biógrafa e investigadora foi a Tchetchélnik, na Ucrânia (na época Rússia), onde a escritora nasceu. E o romance autobiográfico No Exílio, de Elisa Lispector (irmã mais velha de Clarice, que não queria que ela publicasse o livro), onde se narra a história da família, foi também uma grande fonte de informação.

Na altura do encontro de Clarice Lispector com Manuel Bandeira esta ainda não tinha acabado o curso de Direito nem se tinha naturalizado brasileira para poder casar com Maury Gurgel Valente, o diplomata, pai dos seus filhos e de quem veio a separar-se anos depois. Ainda não tinha publicado o seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, nem tinha viajado para a Europa e para Argel, onde numa carta às irmãs escreve “todo este mês de viagem nada tenho feito, nem lido, nem nada - sou inteiramente Clarice Gurgel Valente”.

A investigadora teve que vencer uma certa resistência da própria Clarice Lispector em relação à pesquisa. Não dela pessoalmente porque quando começou a trabalhar a escritora já havia morrido, mas da falta de depoimentos sem ambiguidade. “O que eu tinha era uma ficção ambígua que ao mesmo tempo apontava para uma direcção como para outra”, conta. Nádia Battella Gotlib teve que enfrentar esses caminhos muito ambivalentes.

“As histórias em torno de Clarice são muito pessoais. São produto de uma experiência muito pessoal de cada um em relação a ela. É uma literatura que ataca as entranhas da pessoa. Você nunca lê Clarice de fora: ou mergulha no texto ou não lê Clarice”, explica a biógrafa. “Os depoimentos que eu recolhi às vezes eram muito filtrados pela experiência da literatura. Não se sabia o que é que era invenção a partir da literatura - o que era criação de leitor -, ou o que é que era mesmo experiência de vida com a Clarice.”

Existe uma Clarice “ficcionalizada na memória das pessoas que a conheceram”, concluiu Nádia Battella Gotlib.

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