Tácticas de intimidação a jornalistas ou defesa da honra?
Nas últimas semanas, Sócrates apresentou uma queixa-crime por difamação e uma acção cível. O alvo são quatro jornalistas e o PÚBLICO
a É um dos artigos que não sofreram alterações na última revisão do Código Penal, publicado em 2007. No capítulo "Crimes contra a honra", o artigo 180.º define em que termos pode ser feita uma queixa por difamação e as consequentes penas: "Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias". Foi esta a norma invocada para a queixa-crime que o primeiro-ministro, José Sócrates, instaurou contra o jornalista João Miguel Tavares, a propósito de um texto de opinião publicado no Diário de Notícias (edição de 3/03), titulado José Sócrates, o Cristo da política portuguesa. No dia 2 deste mês, Tavares foi ouvido por um procurador do Ministério Público (MP), no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP). Foi ali que ficou a saber que o cidadão José Sócrates, representado pelo advogado Daniel Proença de Carvalho, o acusa de difamação, estando em causa o texto acima citado, no qual o colunista critica o primeiro-ministro pela ausência de responsabilidade política e pela reincidente teoria da vitimização. O PÚBLICO não conseguiu contactar, até ao fecho desta edição, o director do DN, João Marcelino.
No artigo, Tavares elenca alguns dos casos mais mediáticos que envolvem Sócrates ("a licenciatura manhosa, os projectos duvidosos de engenharia na Guarda, o caso Freeport, o apartamento de luxo comprado a metade do preço e o também cada vez mais estranho caso Cova da Beira") para afirmar: "(...) ele tem vergonha da democracia portuguesa por ser 'terreno propício para as campanhas negras'; eu tenho vergonha da democracia portuguesa por ter à frente dos seus destinos um homem sem o menor respeito por aquilo que são os pilares essenciais de um regime democrático".
Nos últimos dias, a blogosfera aludiu à frase inicial do texto ("Ver José Sócrates apelar à moral na política é tão convincente quanto a defesa da monogamia por parte de Cicciolina") para justificar a queixa de Sócrates. Contudo, na sua última crónica, Tavares esclareceu que foi "processado por muitas frases", mas "nenhuma delas inclui antigas estrelas de cinema pornográfico".
"Um santanismo refinado"
Mesmo que tivesse sido esta afirmação a motivar a queixa-crime, Manuel Costa Andrade, penalista e catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, entende que ela está "dentro da fronteira do criminalmente tolerável e lícito". Autor do livro Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Costa Andrade defende que a crítica é "contundente", mas "criminalmente lícita". "Porque se trata de juízos de valor, a fronteira do criminalmente tolerável só é ultrapassada quando a crítica, pela sua mensagem e pela sua roupagem, assume a forma de um insulto já incompatível com a dignidade humana", argumenta.
Depois da audição no DIAP, o MP terá de decidir pela dedução ou não da acusação. Tavares admite que Sócrates "tem todo o direito" de avançar com este processo "se se sente difamado". Porém, "eu tenho todo o direito de dizer que o comportamento dele tem sido uma vergonha para a democracia". Apesar de este gesto do primeiro-ministro já ter sido interpretado como uma manobra de intimidação, Tavares prefere não enveredar por essa análise.
Pedro Lomba, também colunista do DN e investigador, não utiliza a palavra intimidação. Mas sublinha que, apesar de "todos os governos" terem tendência para "controlar os órgãos de informação", o executivo socialista "não hesita em usar o seu poder para tentar silenciar críticos e para transformar a sua mensagem na mensagem dominante". O caso Freeport, entre outros, é exemplo da incapacidade do Governo em "ouvir versões opostas às suas". "É um santanismo refinado", afirma, "porque repete aquilo que Santana Lopes fazia de uma forma tosca".
A "mais intimidatória"
A invocação insistente de alegadas "campanhas negras" para justificar aquilo que não agrada a Sócrates e ao Governo pode justificar-se pela falta de uma sólida cultura política? Pedro Lomba acha que sim. E acrescenta que a isto está associado o "aproveitamento das condições sociais: uma sociedade civil fraca e um grande servilismo".
No mesmo dia em que Tavares foi ouvido no DIAP (2 de Abril), deu entrada na 11.ª vara de Lisboa (3.ª secção) um outro processo contra jornalistas, igualmente da autoria de José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa. No site tribunaisnet.mj.pt, pode ler-
-se que a acção cível tem como réus o jornal PÚBLICO e os jornalistas Cristina Ferreira, Paulo Ferreira (director adjunto) e José Manuel Fernandes (director). O valor da indemnização pedida é de 250 mil euros. Devido ao período de férias judiciais, as notificações ainda não foram enviadas para os réus e as informações sobre o processo não chegaram ao escritório do advogado do PÚBLICO, Francisco Teixeira da Mota. Contudo, o director do PÚBLICO crê que esta acção se deve ao trabalho jornalístico sobre a discrepância de valores das habitações do prédio onde reside Sócrates (edição de 20/02).
No final das respostas que Sócrates deu ao PÚBLICO, publicadas neste trabalho, lê-se: "qualquer insinuação no sentido do incumprimento das minhas obrigações fiscais só pode ser por mim considerada como caluniosa e difamatória". Notando que a investigação foi feita com "dados factuais e não com insinuações", José Manuel Fernandes entende que a acção cível traduz "uma forma de pressão mais forte e mais intimidatória" do que as queixas-crime. Não apenas porque não há limites para o valor da indemnização, mas também porque os réus são obrigados a apresentarem-se em tribunal. Mais: "Passa a existir a possibilidade de o accionista, ao ver orçamentada a indemnização nas contas da empresa, também pressionar os jornalistas".
Por agora, não se sabe se Sócrates pondera instaurar mais processos contra jornalistas (ver caixa). No entanto, estes dois casos demonstram, diz Pedro Lomba, que os efeitos das relações entre o poder político e a imprensa ultrapassam a dimensão política. "Tudo isto aumenta o potencial de desconfiança dos cidadãos, o cinismo e a falta de zelo."
O penalista Manuel Costa Andrade entende que a crítica de João Miguel Tavares é "criminalmente tolerável e lícita"