Parece ser uma venerável tradição anglo-saxónica desde Jonathan Swift, esta de os mais recomendáveis e 'inofensivos' autores de aventuras 'juvenis' serem também os mais inclementes e moralistas escritores satíricos. E é assim que o narrador das amáveis e picarescas aventuras de Huckleberry Finn e de Tom Sawyer foi também o remetente destas sarcásticas e até amargas "Cartas da Terra".
Os textos que compõem este volume foram publicados postumamente e a pequena história dessa publicação é tão curiosa e significativa quanto os próprios textos. Passa pela interdição que a filha de Mark Twain (receando eventuais efeitos negativos na "imagem" paterna) impôs ao curador e editor do espólio literário do escritor, Bernard DeVoto, que em 1939 pretendeu publicar o livro. Se alguns desses textos foram sendo, entretanto, publicados avulsamente, só em 1962 seriam finalmente editados em volume.
Digamos que Mark Twain (1835-1910), o humorista canónico, consensual, há muito neutralizado (por assim dizer), ganha em "Cartas da Terra" um tom um pouco mais negro e "fracturante". O livro é uma paródia às interpretações literais dos textos considerados sagrados (a Bíblia, neste caso); uma diatribe irónica contra a religião (cristã) e a "maldita raça humana", capaz de inventar um deus, o "Grande Criminoso", mais cruel ainda, e injusto e estúpido, do que ela mesma. Tomemos como exemplo a parábola contada por Satanás na sua sétima carta, enviada da Terra aos seus amigos S. Miguel e S. Gabriel. É a história de um recém-convertido que, convidado por um padre a imitar deus, a "ser como Ele", desata, após "diligente" estudo da Bíblia, a mentir, roubar, trair, assassinar, etc.: "Depois foi informar o padre, que disse que aquilo não era maneira de imitar o seu Pai no Céu. O convertido perguntou em que tinha ele falhado, mas o padre mudou de assunto e perguntou como andava o tempo lá para as bandas dele."
Como em Swift, em Twain o mecanismo é simples: basta um ligeiro desvio de perspectiva, basta levarmos à letra a hipocrisia convencionada, basta olharmos de demasiado perto e com demasiada atenção alguma coisa que logo se evidenciará o cómico e criminoso absurdo da vida. Pelo menos da humana vida.
A qualquer ser medianamente pensante e vagamente herdeiro das "Luzes", a arte blasfematória de Mark Twain, esta sua reprimenda irada, poderá parecer um tanto cândida, adolescente, datada. Mas uma visita do Papa a África basta para devolver ao livro de Twain a "actualidade" que se queira. Aliás, assumisse o deus de Twain outro dos seus inúmeros nomes e teríamos provavelmente o caldo entornado (por causa do multiculturalismo, dos encontros de culturas e do politicamente correcto em geral).
A presente edição portuguesa (existe outra, publicada pela editora Mareantes em 2004) acolhe as onze cartas atribuídas a Satanás - que veio à Terra ver a última maravilha inventada pelo grande Criador - e sete "Documentos da Família Adão", nos quais se incluem excertos do diário de Matusalém e da autobiografia de Eva. Além de uma carta de um anjo em resposta às súplicas (umas atendidas, outras não, claro) do senhor Abner Scofield, carvoeiro abastado de Buffalo, Nova Iorque.