A dor que não é tua
com profundo pesar que anuncio a morte do meu irmão, Nicholas Hughes, que morreu pelas suas próprias mãos no dia 16 de Março de 2009." O comunicado de Frieda Hughes, a filha mais velha de Ted Hughes e Sylvia Plath, impressionou toda a gente que conhece as tragédias que assombram aquela família. Sylvia suicidou-se em 1963, aos 30 anos. Em 1969, a mulher por quem Ted deixou Sylvia, Assia Wevill, matou a filha de quatro anos e suicidou-se. Frieda viveu décadas com uma depressão. E Nick, que sofria do mesmo mal, foi agora encontrado enforcado. Embora Ted Hughes e Sylvia Plath sejam dois dos mais importantes poetas de língua inglesa, tornou-se quase impossível falar simplesmente de literatura depois dos eventos de 1962/1963, das infidelidades de Ted, do suicídio de Sylvia, dos poemas e diários que Ted censurou ou destruiu. Não há talvez ninguém mais odiado pelas feministas do que Ted Hughes. Até na campa de Sylvia o apelido "Hughes" foi repetidamente riscado da lápide, ao ponto de se ter tornado necessário fazer uma inscrição em bronze. Um grande amigo de Hughes, o poeta e crítico Edward Lucie-Smith, contou-me que nunca conheceu um homem com tanto sucesso com as mulheres como Ted. "Elas faziam bicha à espera dele, e ele às vezes desaparecia à hora do almoço ou a meio da tarde para ter sexo com as fãs" (cito de memória). Amado pelas mulheres, odiado pelas mulheres, Hughes confrontou-se com o seu passado na colectânea Birthday Letters, o mais colossal sucesso de público e de crítica da poesia inglesa contemporânea. Birthday Letters não é tanto uma carta a Sylvia mas uma explicação a Frieda e Nicholas, a quem os poemas são dedicados. Eles só conheceram os trágicos detalhes quando chegaram à adolescência, e viveram depois naturalmente perseguidos por essa cena primordial. Na manhã de 11 de Fevereiro de 1963, depois do mais violento Inverno inglês de que havia memória, Sylvia Plath preparou o pequeno-almoço para os filhos, que dormiam, tapou as frinchas da porta com panos e toalhas molhadas, ligou o gás e meteu a cabeça no forno. Frieda tinha dois anos, Nicholas um. Nunca mais se libertariam do que aconteceu nessa manhã.
Quase meio século depois, Nicholas não escapou ao que parece uma fatalidade nos Hughes. Biólogo marinho, Nick estudou em Oxford e ensinava há vários anos na Universidade do Alasca. Não tinha qualquer relação com o mundo literário de Londres, e isso talvez o tenha protegido por uns tempos. São conhecidas várias fotos dele com os pais, e depois reapareceu em público no funeral de Ted, em 1998 (meses depois da publicação de Birthday Letters). As fotografias revelam um homem sério, intenso e, escreveu a imprensa inglesa, "devastatingly handsome". Nas cartas e diários de Plath, encontramos o orgulho que ela tinha na ferocidade que ele demonstrou num parto dificílimo, o orgulho que tinha na sua cabeça perfeita, na sua tez morena, nos seus olhos azuis quase negros, na sua tranquilidade sorridente. E regressamos combalidos aos poemas que falam de Nick em Ariel (1965) e Birthday Letters (1998), dois livros essenciais e terríveis. Eis a mãe, em Nick and the Candlestick: "Ó amor, como chegaste até aqui? / Ó embrião // Lembrando, até a dormir, / A tua posição atravessada. / O sangue brilha limpo // Em ti, rubi. / A dor / Para que tu acordas não é tua. // (...) Que as estrelas / Caiam direitas na sua negra morada, // Que os mercúricos / Átomos a manquejar gotejem / No poço terrível, // Tu és aquele / Com a solidez onde os espaços se apoiam, invejosos. / Tu és o menino no celeiro". E o pai, em Life after Death: "Os olhos do teu filho, que nos perturbaram / com a tua prega epicântica / dos eslavo-asiáticos, mas que chegariam a ser / tão perfeitamente os teus olhos, / tornavam-se jóias humedecidas, / a mais dura substância da mais pura dor, / enquanto eu lhe dava de comer, na sua alta cadeira branca". Notem em ambos os poemas a linguagem rebuscada e violenta, a única possível para uma comoção brutal no meio de tanto sofrimento.
Homem recatado, Nicholas Hughes amava a natureza e a vida selvagem, como o pai. Era solteiro, teve uma namorada durante muitos anos e agora mantinha uma relação com uma colega. Demitiu-se recentemente da faculdade para se dedicar às suas investigações e a uma paixão criativa e terapêutica, a cerâmica. Em 2004 tinha publicado um artigo científico que explicava por que é que certos peixes nadam contra a corrente no meio da turbulência e não em águas mais calmas junto às margens. Impossível não ver nesse texto uma espécie de poema. Nick sempre procurou águas mais calmas, com os seus olhos azuis quase negros, jóias humedecidas; mas às vezes a corrente é forte de mais.
Ariel e Cartas de Aniversário estão publicados em Portugal na Relógio D'Água, com tradução de Maria Fernanda Borges e Manuel Dias, respectivamente