O esplendor da globalização

Romance de estreia do escritor indiano Aravind Adiga (n. 1974) "O Tigre Branco" não está só fadado para a glória instantânea que o Man Booker Prize ganho em 2008 lhe assegurou.

É provável que perdure. É um romance com qualidades: um protagonista ambiguamente memorável, uma linguagem e uma estrutura simples e claras, uma tonificante tonalidade satírica e mordaz.

É a história de um pequeno "self-made man" indiano na era da globalização económica. Contada pelo próprio, que se dirige por carta ao primeiro-ministro chinês (nas vésperas de uma visita deste à Índia), propondo-se contar-lhe "a verdade" sobre o "milagre económico" indiano.

No momento em que escreve, Balram, o protagonista desta "fantástica história de sucesso", define-se como "um empresário autodidacta". E de sucesso, claro. É "um homem de acção e de mudança". Mas também "um homem dado à reflexão". A Índia pode "não ter água potável, nem electricidade, nem sistema de esgotos, nem transportes públicos, nem regras de higiene, nem disciplina, nem boas maneiras, nem pontualidade", diz Balram, mas "empresários não lhe faltam. São aos milhares. Sobretudo na área da tecnologia". Isto é: das "novas tecnologias". Claro. O empresário Balram, o Tigre Branco (a ironia que vai nesta imagem da raridade, nesta alcunha dada na infância ao nosso narrador), tem portanto a sua "start-up" em Bangalore (centro-sul da Índia): "Tudo naquela cidade, parecia-me a mim, se resumia a uma única coisa. Subcontratação. Isto significa trabalhar na Índia para os americanos através do telefone." É o milagre da economia dos "call-centers".

Balram, que fora motorista, vislumbra a sua "oportunidade de negócio": lança uma empresa (Motoristas Tigre Branco) de automóveis de aluguer para transportar as empregadas e os empregados das subcontratadas das multinacionais americanas (que, devido à diferença horária, trabalham de noite). Para garantir a sua quota de mercado, Balram suborna a polícia (seguindo o exemplo do seu antigo patrão, que subornava governantes e oposição em Nova Deli), que trata de eliminar a incómoda concorrência. Não há nada como ver o "mercado" a funcionar em todo o seu esplendor. "É inacreditável." - comenta o nosso herói - "Mal acenamos com dinheiro, toda a gente passa a conhecer a nossa língua." Resta dizer (até porque o incidente é anunciado logo no final do primeiro capítulo) como é que Balram obteve a sua "linha de crédito", o seu financiamento, para pôr a Motoristas Tigre Branco a rolar: degolou o patrão em Deli (a tradução portuguesa abre, aliás, com um equívoco: onde se lê "a falecida ex-mulher do Sr. Ashok", devia ler-se 'a ex-mulher do falecido Sr. Ashok'), pegou numa pasta cheia de dinheiro (que aquele levava para subornar políticos nacionais) e fugiu para Bangalore. Afinal, nem só por trás de uma grande fortuna, como pretendia Balzac (se bem me lembro), está um crime.

"O Tigre Branco" não é, porém, o típico retrato de um arrivista. Bem pelo contrário, Balram consegue ser-nos simpático. Tem algo do clássico herói picaresco. É um pobre deserdado que luta para sobreviver e que, pelo caminho, observa cruamente (sem sentimentalismos nem exotismos) a extraordinária e lamentável máquina do mundo: o cinismo oportunista das élites, a universal cobardia, a corrupção recompensada. "O Tigre Branco" tem algo da mordacidade swifteana e outro tanto da clareza de uma alegoria política de Orwell.

Propondo-se como epítome da emergência da Índia como potência económica mundial - essa Índia que, segundo ele, herdará o mundo do "glorioso século XXI", com a China -, Balram mostra-nos o caminho que percorreu desde a aldeia miserável em que nasceu, no nordeste da Índia, passando por Nova Deli, até Bangalore.

Condenado pelo imobilista sistema social de castas e pela pobreza à servidão eterna, Balram é alguém que não se conforma ao papel que para ele está desde sempre escrito na farsa social e política a que se chama História ("o esplendor da democracia na Índia - o espectáculo impressionante de mil milhões de pessoas a depositar o respectivo voto nas urnas para decidir o seu futuro, em plena liberdade de sufrágio universal, etc. e tal."). Nesse sentido, Balram tem algo de prometaico também. Que a sua desobediência (que chega ao crime de sangue) não seja ideologicamente estruturada e que a sua aptidão para sobreviver seja politica e moralmente 'incorrecta', isso nem surpreende nem vem ao caso. Move-o só a raiva instintiva dos humilhados e ofendidos. Legítima defesa.

Sendo vários os momentos em que Balrram, ao longo da narração, relembra a servidão em que viveu seu pai e compara a vida deste à sua, termina o livro com esta afirmação desafiante: "Direi que valeu a pena só para saber, nem que fosse por um dia, nem que fosse por uma hora, nem que fosse por um 'minuto', o que significa não ser criado. Acho que estou preparado para ter filhos".

Diga-se, por fim, que nem só da Índia vive "O Tigre Branco", que é um romance verdadeiramente "global", a condizer com os gloriosos tempos que vivemos. O "oásis" cavaquista de há uns anos ou o presente primeiro-ministro Sócrates a inaugurar com ridícula pompa propagandística um "call-center" em Santo Tirso não são estranhos ao clima do livro de Adiga. A pífia ideologia do "sucesso" é a mesma. Um mimo.

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