Angola e o relativismo moral
A recusa do Bloco de Esquerda em comparecer à cerimónia de apresentação de cumprimentos ao Presidente José Eduardo dos Santos provocou uma série de reacções reveladoras da extrema hipocrisia e paternalismo (uma expressão de racismo) com que muitos políticos e analistas portugueses olham hoje para Angola. João Marcelino, director do Diário de Notícias, que se afirma um conhecedor de África por lá ter residido, durante "um período curto (e jovem)" da sua vida, começa por acusar os bloquistas de serem uma espécie de "virgens político-intelectuais que confluem no palco comunicacional para nos falarem da corrupção, da pobreza e da falta de democracia" em Angola. E conclui: "Tenho a consciência do que podemos, de forma realista, esperar de democracia naqueles territórios nas próximas décadas. O problema de muitos europeus é que não sabem. A tragédia do continente africano não sai do primeiro plano das notícias e eles parecem querer acreditar que podem exportar ideias e modelos de organização de sociedade como quem exporta petróleo. Ora isso não é apenas demagogia, é uma profunda e lamentável ignorância."
O relativismo moral parece ser uma doutrina comum a todos aqueles que não se envergonham de estender a mão aos dirigentes angolanos. Recomendo, a propósito, a leitura de Jogos Africanos, de Jaime Nogueira Pinto, o qual durante muitos anos apoiou Jonas Savimbi, antes de descobrir que o "outro lado" estava, afinal, bem mais próximo do seu - o da direita nacionalista. Também Nogueira Pinto relativiza os eventuais excessos cometidos pelos dirigentes africanos: "Como eram os nossos estados à nascença? Os reis não eram donos de tudo? Não distribuíam empregos e terras pelos seus partidários, confiscando-as aos adversários? Não favoreciam a família e os amigos? Não juntavam poder político, riqueza e direito de vida e de morte sobre os súbditos? Não transmitiam por herança aos filhos esses poderes e riquezas?" (página 513).
Sem precisar de sair do cone austral do continente africano, no qual Angola se insere, podemos apontar três países com regimes democráticos sólidos, e governos se não excelentes, ao menos razoáveis: Botswana (um exemplo para o mundo em termos de gestão ambiental), África do Sul e Namíbia. Convém talvez lembrar aos relativistas portugueses que todos estes países são jovens. A Namíbia é até mais jovem do que Angola. Na Maurícia ou em Cabo Verde a democracia também não precisa ser relativizada. São regimes democráticos, sim, provavelmente mais sólidos e mais respeitadores dos direitos humanos do que alguns europeus - basta lembrar o caso italiano.
Por outro lado, e era aqui que eu queria chegar, se a Europa já não se preocupa com a situação dos direitos humanos e da democracia em Angola, então o que a distingue da China?
Há em Angola muitas pessoas que desde sempre defenderam a democracia, a paz e os direitos humanos. Uns em pequenos partidos da oposição não belicista. Outros fazendo ouvir a sua voz na vigorosa imprensa independente ou animando estruturas ligadas à sociedade civil. Estas pessoas, entre as quais se contam analistas experientes e influentes, como Justino Pinto de Andrade e Reginaldo Silva, costumam defender a prioridade das relações com a Europa, em oposição à China, com o argumento de que a aproximação a este último país não favorece a afirmação da democracia.
Pelos vistos, a aproximação a Portugal também não.
Nesse caso, porquê privilegiar Portugal? Os negócios da China em Angola tendem a ser mais transparentes. Os empréstimos chineses, por exemplo, costumam assumir a forma de grandes obras públicas, como a reconstrução de estradas e das linhas férreas. Técnicos, operários e material vêm da China, deixando pouca margem para a corrupção.
Resta a língua. Fala-se no envio de professores portugueses para Angola - 200. Ou seja, não há projecto algum no que diz respeito ao apoio do ensino da língua portuguesa em Angola. Resumindo: Portugal quer o dinheiro de Angola, mas oferece muito pouco, ao povo angolano, para a construção de um futuro mais justo. a