A tripolarização
Depois de 30 anos de bipolarização, estamos provavelmente a entrar numa fase em que três blocos políticos se guerreiam
Há muitos, muitos anos, era eu (quase...) uma criança, algum PPD queixava-se das "infiltrações de Direita" no partido. Era a época em que o partido andava à deriva, alguns consideravam que a sua matriz ideológica era socialista e que o posicionamento político tinha de ser no centro-esquerda. Escrevi bastante sobre isso e tive intensas polémicas sobre o tema.Esta espécie de flashback surgiu-me ao ler uma crónica de Ferreira Fernandes (um dos comentadores que - como diz o Guia Michelin - "valem a viagem") em que Strecht Ribeiro falava das "infiltrações de Direita" no PS. Preocupação - reconhece-se - mais legítima do que a de há 30 anos, desde logo porque o PSD de então - esquizofrenicamente - queria ser de esquerda, mas garantindo todos os votos de direita...
Seja como for, o tema merece reflexão, ainda que se desconte a época de caça aos votos que já abriu. Admito que me vá repetir, pois nos últimos anos várias vezes tenho dito o que se resume facilmente e que vem agora a propósito de novo: como antecipei pouco tempo depois das eleições de 2005, 1) os partidos à esquerda do PS podem obter 20% a 25% dos votos; 2) o PSD e o CDS não devem conseguir alcançar mais de 35% a 40%; 3) o PS pode aspirar, portanto, a algo entre 45% e 35%.
A primeira conclusão a retirar é a mais importante para Portugal e para o futuro do sistema político: depois de 30 anos de bipolarização (e, com algum orgulho, recordo que fui, a partir de 1977/8, quem esteve mais activo na teorização e na defesa desse modelo para o desenvolvimento político português), estamos provavelmente a entrar numa fase de tripolarização, em que três blocos políticos se guerreiam, é difícil entre eles realizar alianças e coligações e a instabilidade e a ingovernabilidade se acentuarão.
A segunda conclusão é que o sonho de Mário Soares, nos idos de 75/6, se está a realizar: o PS está a tornar-se no "partido natural de Governo". O tempo da bipolarização (devido à incapacidade que o PS e o PCP tiveram em colaborar, contra o que sempre defendi dever nesses tempos ocorrer) foi dominado pelo PSD, em coligação ou solitário (de 1979 a 2005, esteve sempre no Governo, com excepção dos anos do consulado guterrista, que foi, aliás, o primeiro ensaio, prematuro, de tripolarização) e o novo tempo vai ser dominado pelo PS... se certas condições se reunirem.
A terceira conclusão é que a tripolarização altera as fronteiras do combate político. Realmente, na bipolarização, as batalhas importantes fazem-se pela conquista do "centro", entre dois exércitos, sendo o resto meras escaramuças; foi, aliás, essa a principal razão para que sistemicamente eu defendesse esse modelo organizacional do espaço político. Na tripolarização, pelo contrário, o partido central, e por isso o partido natural de Governo, tem de batalhar à esquerda e à direita, como aconteceu ao conde duque de Olivares que, para não dividir tropas entre Portugal e a Catalunha, optou por esta última, ninguém podendo saber se teria podido ganhar dos dois lados.
A quarta conclusão é que a conformação do sistema político para os próximos anos ainda depende do PS e, por enquanto, só depende deste partido, podendo vir a depender de Cavaco Silva. O que também se resume com facilidade: 1) o PS pode optar entre ser o partido liderante de esquerda e fazer o combate só à direita; 2) pode optar por ser o tal partido natural de Governo; 3) ou pode optar por tudo e ficar sem nada.
A primeira opção dará boa imprensa, mas maus resultados, a curto prazo (fuga de votos do centro) e a médio prazo (o BE, o PCP e as rosetas deste mundo passarão a valer tanto como o PS, pois a esquerda consistentemente não vale mais de 40% a 45%). É fazer as contas, como diria Guterres.
A segunda opção dará má imprensa e pode levar ao esvaziamento do PS, se perder as eleições legislativas deste ano; mas provavelmente (e devido a Sócrates), assegurará a vitória e até pode chegar à maioria absoluta se os medos da ingovernabilidade e da presidencialização cavaquista levarem franjas de esquerda e de direita, por razões opostas, a votar no cavalo vencedor, criando uma self fullfiling prophecy.
A terceira opção será a aposta na indefinição e na confusão. César, dizia-se, era o homem de todas as mulheres e a mulher de todos os homens. Fosse ou não, o PS se quiser ser tudo e o seu contrário perderá votos dos dois lados e, o que não é menos grave, a própria alma.
Em minha opinião - e por enquanto -, ainda acho que a presidencialização do regime deve ser evitada. Por isso me resignei à tese da tripolarização. Mas não nos equivoquemos, o sucesso deste modelo instável depende de coligações: no estado em que está o país, no estado em que estão os partidos, o PS, por si só, nunca ganharia eleições sozinho, e muito menos em maioria absoluta.
Há muitos anos, escrevi que o PS tinha uma coligação com António Guterres, manifestamente, e como bem recordou Ferreira Fernandes, um "infiltrado de direita". Há mais de um ano, defendi que o PS deveria fazer uma coligação com Manuel Alegre, tese que agora ganhou foros de cidade ao ser proposta por António Costa. E alguém tem dúvidas de que Sócrates está politicamente à direita e estrategicamente muito à frente do PS? Pois não é óbvio que o país há quatro anos que tem um Governo de coligação entre o PS e Sócrates?
Sem Sócrates, o PS perderia as eleições clamorosamente. Sem Alegre, pode não as ganhar com resultado tão relevante quanto o modelo da tripolarização exige. Por isso é que o futuro do PS e o conteúdo da evolução provável do sistema político exige que os dois homens se entendam e que as tropas socialistas, que pouco ou nada têm a ver com isso, aguardem em ordem unida as instruções seguintes. É chato para barões e sargentos. Mas é assim. Advogado