"Não tenhamos ilusões: a literatura é mais aberta do que o cinema"

Foto

Aos 59 anos, e depois do desastrado "Corrupção", João Botelho regressa. Fiel à sua forma, ou seja "respeitando os actores, o texto, a luz, a música, o som, o som directo, o vento das árvores, o som do mar."
A matéria de que é feita "A Corte do Norte" é a escrita genial de Agustina, a luz de Caravaggio, a música de Schubert e de Verdi, e as mutações de Ana Moreira que constrói seis personagens diferentes.

Qual foi a sua relação com a obra da Agustina?

Nenhuma! Encontrei e estive com ela várias vezes quando vivi no Porto durante quatro anos.

Nunca tinha lido nenhum livro dela?

Quem é que nunca leu "A Sibila"? E devo ter lido mais uns, já me lembro de quais, são tantos.

Como chegou à "Corte do Norte"?

Quem estava apaixonado pela "Corte do Norte" era o José Álvaro de Morais, o cineasta português mais romântico. E o mais ambicioso. Quando ele morreu, em 2004, o projecto ficou nas mãos do produtor António da Cunha Telles e era coisa para um milhão de contos. O José Álvaro adorava o Visconti, gostava de grandes dimensões. Amigos comuns meus, do José Álvaro e do produtor, disseram-me: "Só tu é que podes pegar e fazer isto."

Tentei transformar um filme dispendioso num filme barato. O meu trabalho foi deitar fora tudo e ir ao livro e ver o que é podia adaptar, de um ponto de vista mais económico sem trair nem a memória do José Álvaro nem os textos da Agustina.

A Agustina tem uma coisa engraçada. Quando vende os direitos dos livros põe três cláusulas. Se gosta do filme - e quer sempre ver o filme - tem que se pôr "adaptado do romance de Agustina Bessa-Luís"; se gosta assim-assim é "inspirado num romance de Agustina Bessa-Luís"; se não gosta nada, tem que se pôr "a partir de uma ideia de Agustina Bessa-Luís"...

Agustina viu o filme?

Viu, e ficou comovida.

E qual foi a sua sorte?

Ela deixou ficar "adaptado" [sorrisos]. Tenho uma carta que ditou à filha, Mónica, que é maravilhosa e que tem uma frase fantástica: "Finalmente se prova que não há incompatibilidade entre o cinema e a literatura."
A minha paixão pelo romance resume-se a uma coisa: a arte é maior que a vida. Para mim, aquilo que me encantou foi a ideia de uma prostituta de Benfica, descoberta pelo Garrett, transformada numa actriz, Emília das Neves, transformada pela Agustina em Emília de Sousa, que por sua vez nunca revelou que era a Emília da Neves. Encontrei uma biografia, ainda do século XIX, intitulada "A Bela Emília", em que há frases dessa biografia que estão transcritas directamente para o romance. Aquela história da pateada é uma história que se passa no Porto, em que ela chega atrasada. Houve, de facto, uma pateada enorme, mandaram-lhe moedas e ela diz: "Se isso é para os pobres podem atirar mais."

Mas essa é uma das muitas histórias de "A Corte do Norte". Qual foi a que lhe interessou mais?

Para além do puzzle incrível e do tom detectivesco, é essa menina ser transformada em actriz. Depois de se casar com o tio mais rico da Madeira e ter uma vida de burguesa quase aristocrática - aristocrata de segunda, chega a ser Baronesa Madalena do Mar -, depois do impacto com a pessoa mais rebelde que existia na Europa da altura, a Sissi, rebenta com as convenções, deixa de ser baronesa, e abandona a Madeira para se tornar actriz...

Aí entra a senhora Agustina, que inventou uma coisa maravilhosa. Se se vir a figura da Emília das Neves [encontra-se um busto no "foyer" do Teatro Nacional D. Maria II], é uma senhora atarracada, baixa, gordinha, se calhar com buço, feia, e foi transformada pela Agustina na pessoa mais bonita do mundo, tão bonita como a Sissi, uma sósia.
Foi essa transfiguração que me permitiu utilizar a mesma actriz para fazer essas personagens todas.

Estava à espera que a Ana Moreira conseguisse desmultiplicar-se?

É inacreditável, mas eu sabia que a Ana Moreira tem um dom para o cinema. Há pessoas que também têm esse dom - a Isabel de Castro, a Isabel Ruth, a Laura Soveral. Quando recebem uma luz na cara transformam-se. Agora não sabia que ela conseguia aqueles registos todos. Era fantástico vê-la: sabe o que é construir, de manhã, uma figura dos anos 60 e, depois, à tarde, criar outra com 100 anos antes? Aquilo não é mudar os cabelos e as roupas é mudar o personagem. Podia ser um desastre mas não foi.

"Finalmente se prova que não há incompatibilidade entre o cinema e a literatura", escreveu Agustina. Não há em "A Corte do Norte" demasiada literatura?

A voz, o texto, é tão matéria-prima como o olhar, como a luz. Este filme está marcado por duas fontes de inspiração: o texto da Agustina e a matéria de luz do Caravaggio. Isto serve-me para uma homenagem ao cinema, com a ideia de que a fotografia é anterior ao cinema, do cinema ser composto por vários elementos - isso chama-se matéria, matéria.

O texto é da Agustina, a luz é do Caravaggio, e a música...

... é também matéria, não é para encher chouriços. Tive a sorte de encontrar uma música de Schubert, "Rosamunde", e, é evidente, a "Traviata", do Verdi, que a Sissi ouvia. Mas é sempre assim: ouçam-na, ouçam a música, agora vejam um gesto.

Não respondeu à questão: a forte carga literária dada pela voz- "off"...

A ideia é respeitar um texto que é forte ou mais forte do que a ilusão. Aquilo é matéria, não há ilusão nenhuma. O cinema não é ilustração. Uma das coisas que mais me agrada no cinema que defendo é a defesa integral do texto literário. Só há uma frase minha: "Ouçam a minha voz e sigam-me para que não se percam." Até a palavra FIM está a mais.
Para mim é criar emoções com coisas abstractas! A minha forma é para ser feito quanto mais abstracto melhor! Quem me dera chegar às riscas do Rothko ou ao écrã preto do João César Monteiro! Isso é que é respeitar a palavra.

A ideia é que se ouça, ouça, ouça. O cinema é isso: é uma coisa das luzes e das sombras, para as pessoas se atirarem lá para dentro, pôr um tapete muito bonito e retirá-lo quando as pessoas se estão a babar. O cinema nunca permite identificação. Estou sempre a dizer: "Atenção isto é falso, atenção isto é falso." O que é verdadeiro é a relação entre o que se passa no écrã e as pessoas. Ninguém morre no cinema.

A história não me interessa nada. O que me interessa é a maneira de escrever da Agustina - não gosto das coisas lineares mas das incongruências em que ela nos faz tropeçar - e a maneira de eu filmar. As histórias são do século XIX. O cinema deve ser maior do que as histórias. É o modo de filmar que me interessa. A arte não se percebe, um quadro não se entende, não é para perceber! E não tenhamos ilusões: a literatura é mais aberta do que o cinema. O cinema fixa coisas. Quando num romance se diz que uma pessoa está vestida com um casaco castanho, com uma gravata manchada de amarelo, com a camisa amarela eu pergunto: quantos castanhos há?

Há uma questão óbvia: a ficção da Agustina está ligada à obra de Oliveira... ["Francisca", 1981, adaptação do romance "Fanny Owen"; "Vale Abraão", 1993, baseado no romance homónimo; "O Convento", 1995, inspirado numa ideia original de Agustina; "Party", 1996, argumento de Oliveira e diálogos da escritora; "Inquietude", de 1998, adaptado de "Mãe do Rio"; "O Princípio da Incerteza", de 2002, baseado em "A Jóia de Família"; "O Espelho Mágico", 2005, inspirado em "Alma dos Ricos"]

O cinema para mim nunca é o que se passa e quando se passa, é onde se põe o raio da câmara. Fizeram-se grandes filmes sobre a "Madame Bovary", do Flaubert, um deles é o "Vale Abraão", do Oliveira - o Renoir e Buñuel foram os outros. Mas o cinema não é a Madame Bovary. O cinema é o modo de filmar a Madame Bovary.

O plano do Oliveira não tem nada a ver com o meu. Ele ainda é mais radical do que eu. Ele diz: não há cinema, o cinema é um registo mecânico do teatro, o teatro não tem rede. O cinema é um olhar, o teatro é a palavra. Adoro a câmara no Oliveira. A diferença está na construção ideológica e de formação. O Oliveira acha que as mulheres são perversas. Não partilho dessa posição: estou com Agustina, as mulheres são geniais e grandes, os homens são débeis e fracos. Para ela, são as mulheres que transformam o mundo, são elas que lutam que rebentam com as convenções e os homens vão atrás, são arrastados.

Lê Agustina como uma feminista?

Não tem a ver com isso. Nos livros dela são as mulheres que mandam e mais nada, não é por serem perversas.

Sugerir correcção
Comentar