Pai de Aveiro que esqueceu bebé no carro não deverá ser preso
Juristas acham que castigo
está dado. Se for acusado,
o programador informático
deve ser sujeito a pena suspensa
a Houve um crime. Se o pai tivesse cumprido o seu dever de cuidar, o bebé de nove meses não teria morrido. Mas o programador informático de Aveiro que se esqueceu do filho no carro não deverá ser preso. "O nosso sistema penal é civilizado", diz o juiz Madeira Pinto.Na quinta-feira passada, meteu o filho na cadeirinha, no banco de trás do Opel Corsa, como tantas outras vezes. No embalo da viagem, o bebé adormeceu. Por volta das 9h30, o pai estacionou ao pé da empresa, que fica a quatro ou cinco metros da creche, em Aveiro. Levantou-se, correu para o escritório, mergulhou no trabalho. Lá fora, o sol batia no vidro, gerava efeito de lupa.
"Estava noutra onda", concluiria a Polícia Judiciária. Estava "alienado", como o informático que mora no imaginário colectivo. Já passava do meio-dia quando percebeu que não deixara o filho onde devia. Uma sócia da creche estranhara a ausência, ligara à mãe.
Um acto de negligência é um afastamento do padrão de comportamento do cidadão médio, salienta Paula Ribeiro Faria, professora na Universidade Católica. Houve negligência. Agora, as entidades competentes irão apurar se há causas de exclusão de culpa.
Como cidadão, o jurista Carlos Abreu Amorim entende que o informático "não deve ser punido". Com o ritmo "alucinante" dos tempos modernos, basta um telefone e um auricular para o carro se transformar num gabinete. Tem dois filhos. Muitas vezes, viaja ao telefone, com eles sentados lá atrás. "Não é que me esqueça, mas é como se não estivessem lá."
Como é que nos defendemos da velocidade? "Temos rotinas", sublinha o professor na Faculdade de Direito da Universidade do Minho. "Quantas vezes agimos maquinalmente? Tantas vezes quero ir para um sítio e sigo para a universidade!" Num momento de stress, de agitação, tudo se agrava. Até pode acontecer a pessoa julgar que cumpriu uma rotina, passar à seguinte.
Madeira Pinto segue o raciocínio. Por vezes, estaciona fora do sítio habitual e quando sai do tribunal não se lembra onde meteu o carro. Tem dois filhos já grandotes, um de 12 e outro de 20. Já lhe aconteceu ter pesadelos, acordar a transpirar: tinha perdido os filhos.
Na opinião do psicólogo criminal Carlos Poiares, "é preciso fazer uma avaliação psicológica" àquele pai, saber o que aconteceu. Exaustão? Pressão laboral? Dificuldades da vida? De uma coisa tem a certeza: "Não se deve crucificar o sujeito nem desculpabilizá-lo."
Carlos Abreu Amorim acha que "o castigo está dado". "Não há castigo que se possa sobrepor a este. Acho que aquele homem irá arrumar o quarto do filho todos os dias na sua cabeça." Condenar quem está "num sofrimento tão pavoroso" parece-lhe "um formalismo seco, que não tem relação com a justiça" - "uma crueldade".
A dor não deixará de ser ponderada pelo Ministério Público (MP), acredita Paulo Mata, assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. "Não temos aqui uma lei de olho por olho", corrobora Madeira Pinto, julgando que "ninguém de bom senso exigirá prisão num casos destes".
O programador informático foi indiciado por homicídio por negligência grosseira (punido com pena de prisão de um mês a cinco anos) e não por homicídio por negligência simples (punido com multa ou prisão até três anos). O que os distingue? Um aplica-se a um acto censurável, outro a um acto particularmente censurável, por a violação do dever ser mais intensa, aclara Paula Ribeiro Faria.
Feito o inquérito, o MP poderá não acusar, propor a suspensão provisória do processo, lembra Paulo Mata. Em troca, o indivíduo seria, por exemplo, obrigado a entregar dinheiro a uma instituição, a fazer serviço de interesse público ou a frequentar consultas de psicologia ou de psiquiatria.
Se o MP acusar, o tribunal pode decidir não condenar a prisão. "Quando há pena de multa ou prisão, a regra é dar preferência à multa", explica Madeira Pinto. Quando há uma pena que vai de um mês a cinco anos, "com o novo Código Penal, a regra é dar preferência à pena suspensa". Por isso, calcula, "aquele pai nunca sofrerá pena efectiva".
Ao ouvir a história, Paula Ribeiro Faria lembrou-se do Código Penal alemão. No parágrafo 60, dispensa de castigo "quando as consequências dos factos que atingiram o agente são tão gravosas que a aplicação de pensa seria injusta". Pensa que esta seria "uma forma de resolver um problema" como o do pai que esqueceu o bebé adormecido no banco de trás.
Aquela normativa só se aplica a penas de prisão inferiores a um ano. Todavia, "permite atender a situações como a de um homem que vai a conduzir, tem um acidente, mata a família". O hipotético motorista "já foi punido mais severamente do que pode ser pelos tribunais".
O Código Penal português tem uma norma que se intitula "dispensa de pena", mas só se aplica a "crime não punível com pena de prisão não superior a seis meses ou só com multa não superior a 120 dias", isto se "a ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas, o dano tiver sido reparado e à dispensa de pena não se opuserem razões de prevenção".
Há quem diga que aquele artigo também cobre os casos em que o indivíduo já foi punido com as consequências do facto criminoso. Só que isso não está lá. E se estivesse, com aquele limite de pena, não se aplicaria a homicídio por negligência. Mediante a legislação em vigor, "se formos para uma ideia de justiça", o que parece adequado a Paula Ribeiro Faria é uma pena suspensa.
Carlos Abreu Amorim acha que uma pessoa que vê morrer um filho desta maneira já teve castigo suficiente