Éramos jovens, éramos tolos (E nos anos 70 diziam coisas como: morte ao insecto fascista que se alimenta da vida das pessoas)
Uma terrorista americana convertida em dona de casa exemplar é a história de Sara Jane Olson. Depois de sete anos na cadeia, acaba de regressar à sua vida perfeita: uma bela casa, três filhas e um marido médico que esperou por ela
a Um enorme e solitário ramo de flores espera Sara Jane Olson à porta da sua casa de St. Paul. Para os seus amigos dos últimos 30 anos, não sobra nada nesta mulher de 62 anos - uma doce e querida dona de casa do Minnesota, entusiasta do teatro e literatura e voluntária de causas de caridade - que lembre aquela outra que ela foi, uma confessa operacional de um grupo radical de guerrilha urbana, num Verão quente da década de 70, e que lhe custou os últimos sete anos passados numa prisão da Califórnia.Nesses tempos Sara Jane ainda respondia pelo nome de baptismo, Kathleen Soliah. Tinha 24 anos, terminara a sua licenciatura, procurava trabalho como actriz e acabava de mudar-se com o namorado James Kilgore para Berkeley, na Califórnia, o centro do movimento antiguerra do Vietname, um reduto de extrema-esquerda segundo todos os critérios americanos. Eram jovens, educados, relativamente abastados em dinheiro - e revolucionários. O governo americano era, para eles, um regime "fascista-capitalista"; a guerra "imperialista".
"Porcos!", gritou Kathy Soliah, megafone na mão em pleno parque Ho Chi Minh de Berkeley, depois de seis membros do Symbionese Liberation Army (SLA), entre os quais a sua melhor amiga Angela Atwood, terem morrido na sequência de uma troca de tiros com a polícia de Los Angeles. "Os nossos amigos foram atacados e assassinados por 500 porcos em LA com o país a assistir na televisão", informou, entre lágrimas.
"Acredito que a Gelina e os seus camaradas lutaram até ao último segundo. Gostava que ela estivesse aqui ao pé de mim agora, mas sei que ela viveu feliz e morreu feliz, e nesse sentido só posso ter orgulho nela", prosseguiu. E depois a frase que sela o seu compromisso: "Soldados do SLA! Sei que nem é preciso dizer, mas a luta continua. Eu estou convosco!"
"Gelina", o nome de guerrilha de Atwood, tinha participado num assalto a uma loja com outros membros do SLA. Refugiados no bairro predominantemente negro de South Central, em Los Angeles, são cercados pela polícia. Não se entregam, abrem fogo. O tiroteio dura mais de duas horas, pára a cidade e ocupa a emissão televisiva. Era a primeira vez que os americanos viam terrorismo interno num directo nacional.
Mais de cinco mil balas depois, um cartucho de gás lacrimogéneo, disparado pelas autoridades para o interior do apartamento dos extremistas, pega fogo às munições. O lugar arde em minutos: quatro dos membros do SLA morreram nas chamas, dois foram atingidos pela polícia quando tentavam escapar.
Antes da morte de Gelina, Kathy partilhava as visões dos seus amigos revolucionários, mas não o seu envolvimento no grupo de guerrilha urbana fundado três anos antes, em 1971, e cuja actividade começava a aumentar em espectacularidade e violência. O seu mentor, Donald DeFreeze, um condenado evadido da prisão, inventara o termo "simbionês" a partir do conceito biológico de simbiose, para representar a união das classes e raças.
De acordo com Les Payne, autor do livro The Life and Death of the SLA, "o conceito defendia uma violência seleccionada - assaltos, raptos, assassinatos - como método para garantir a atenção mediática e o apoio popular". A sua retórica era copiada dos manifestos revolucionários comunistas da América Latina, reciclada com os ideais de "propaganda urbana" do jornalista marxista francês Régis Debray.
Os seus membros assumiam novas personalidades: o nome de guerra de DeFreeze era "General Marechal de Campo Cinque Mtume". O seu slogan era "Morte ao insecto fascista que se alimenta da vida das pessoas". O seu símbolo: uma cobra de sete cabeças.
Com a morte da amiga, em Maio de 1974, Kathy transpôs a barreira e assumiu o seu legado. Durante pouco mais de um ano, concentrou-se no trabalho político clandestino. "Éramos jovens, éramos tolos. Acreditávamos que as nossas acções ideológicas eram necessárias e justas", confessou, numa carta de desculpas antes do início do seu julgamento, quase 30 anos mais tarde.
Nessa altura, o SLA já contava com um extenso cadastro. O grupo extremista reivindicara a autoria do assassinato do primeiro superintendente escolar negro em Novembro de 73, porque tinha cometido o "crime fascista" de impor cartões de identidade aos estudantes. Em Fevereiro do ano seguinte, raptou Patty Hearst, de 19 anos, herdeira do famoso império mediático, no seu golpe mais espectacular.
Hearst participaria activamente nas actividades do "exército": planeamento de atentados bombistas e assaltos - incluindo aquele por que Kathleen Soliah viria a ser condenada. Aliás, Patty foi a principal informadora sobre o SLA, dando detalhadamente conta da sua vida no meio do grupo guerrilheiro no livro Every Secret Thing, publicado em 1982, quando Kathy já era Sara Jane.
Jon Opsahl, filho de uma das vítimas do SLA, não considera que sete anos na cadeia sejam punição suficiente para os actos da "terrorista-convertida-em-dona-de-casa-exemplar" Sara Jane Olson. Mas recusa-se a fazer mais comentários sobre a decisão que levou à sua saída, em liberdade condicional, da prisão de Chowchilla, na Califórnia, onde cumpria pena pelo envolvimento na morte da sua mãe. "Não tenho mais nada a dizer."
Presa em 1999
No dia 21 de Abril de 1975, Myrna Lee Opsahl, de 42 anos, estava no Crocker National Bank de Carmichael, um subúrbio da capital da Califórnia, quando este foi assaltado pelos membros do SLA, num raide que lhes rendeu 15 mil dólares. Myrna tinha ido depositar a receita do peditório da igreja que frequentava. Uma bala perdida, alegadamente disparada sem intenção, matou-a no local. "Não faz diferença, era uma porca burguesa", terá dito Emily Harris, a autora do disparo, de acordo com a versão do livro de Patti Hearst.
O dinheiro - que o SLA considerava "expropriado" - era necessário para uma complexa operação de armadilhamento de carros da polícia, uma retaliação pela morte dos camaradas em South Central. O grupo colocou pelo menos três bombas em veículos policiais: uma primeira explodiu em Emeryville, próximo de São Francisco, duas outras foram desactivadas em Los Angeles pela brigada de explosivos.
A investigação levou a polícia até ao apartamento que Kathleen Soliah ocupava em São Francisco em Setembro de 75, mas ela já tinha desaparecido. Um ano mais tarde era acusada à revelia por um Grande Júri federal. Só em Junho de 1999 é que ouviu a acusação - e reconheceu a sua culpa.
O departamento de polícia de Los Angeles não demorou a reagir à notícia da sua libertação, com metade da pena ainda por cumprir. "É uma bofetada na cara de todos os membros da família da autoridade. Ao aceitar esta libertação, o governo da Califórnia está a abdicar das suas responsabilidades para com os seus agentes: as acções desta mulher, dirigidas contra a força policial, tinham a intenção de matar aqueles cujo dever é proteger e manter a lei", lamentou o presidente da Liga Protectora da Polícia de Los Angeles.
Anfitriã perfeita
No Minnesota, ninguém se lembra de Sara Jane Olson antes de 1977, quando apareceu em St. Paul à procura de emprego. Além de trabalhar como cozinheira numa cantina, juntou-se ao Unity Theater, uma trupe politicamente activa de Minneapolis, e pouco tempo depois conheceu Fred Peterson, um estudante de Medicina. Casaram em Março de 1980.
Sara Jane era, então, uma cozinheira excepcional, e as festas do casal eram referência para um grupo alargado e ecléctico de amigos. As discussões envolviam os temas da actualidade política, e Olson tinha ideias fortes, informadas e bem fundamentadas. "Era óptimo discutir com ela, era sempre muito apaixonada nas suas opiniões. Mas nunca a descreveria como uma radical", comentou um dos seus amigos ao Minneapolis Star Tribune.
Pouco depois do nascimento da primeira filha, Emily, a família viajou para o Zimbabwe, onde Fred foi trabalhar como voluntário numa missão médica britânica. Sara Jane dava aulas de Teatro e de Inglês - a segunda filha, Sophie, nasceu em África. No regresso, viveram pouco tempo em Baltimore, enquanto Fred fazia uma pós-graduação em doenças tropicais na conceituada Johns Hopkins University. Depois, regressaram ao Minnesota.
Como escrevia o Star Tribune, a vida de Sara Jane nesses 25 anos "quase podia ser canonizada": em diferentes momentos, dedicou-se a ler para os cegos, a organizar refeições para os pobres, a trabalhar com vítimas de abusos e maus tratos e com crianças desfavorecidas em campos de férias. Era a leitora do conto de Natal da United Methodist Church, onde o marido toca trompete. A sua paixão pelo teatro levara-a de volta ao palco: em 1993, a sua representação na peça Tudo Está Bem Quando Acaba Bem mereceu entusiásticos elogios da crítica.
Nos anos 90, o casal tem três filhas (Leila é a mais nova) e está confortavelmente instalado num bairro de classe média alta em St. Paul. Mas em Junho de 1999, depois de o programa televisivo America's Most Wanted ter passado duas reportagens sobre as actividades do Symbionese Liberation Army e alertado para a existência de vários membros ainda em fuga da justiça - entre os quais James Kilgore, capturado na África do Sul em 2002 -, o feitiço é quebrado: depois de uma informação anónima, a polícia detém Sara Jane Olson.
O julgamento de Sara Jane (esse já era, legalmente, o novo nome de Kathleen Soliah) começou em Novembro de 2001, e a sua estratégia de defesa foi fortemente influenciada pelo "clima psicológico" pós-11 de Setembro, onde a referência a bombas e actos de terrorismo se tornara insuportável. A pena podia ir aos 20 anos de prisão, mas no final foi fixada em 14, dos quais cinco obrigatórios.
Cumpridos seis anos, a direcção da prisão autorizou a sua libertação, justificada pelo bom comportamento e trabalho desenvolvido na cadeia, e Sara Jane voltou para a família no Minnesota. Mas afinal houvera um engano no cálculo do tempo necessário para a atribuição da liberdade condicional e Olson voltou a ser detida.
Pouco depois da meia-noite de terça-feira, foi definitivamente libertada, contra a vontade das forças policiais e do governador do Minnesota, Tim Pawlenty, que procurou evitar que a liberdade condicional pudesse ser passada em St. Paul. Sara Jane tinha o marido à espera nos portões da prisão de Chowchilla, e o solitário ramo de flores depositado à porta da sua casa no Minnesota pelos seus vizinhos, felizes com o regresso da dona de casa radical.