Ternas guerreiras

João Botelho pega num dos mais complexos romances de Agustina Bessa-Luís com luvas de renda e um imenso cuidado de homenagear José Álvaro Morais, a quem dedica no genérico um exemplar do livro (como se lhe pertencesse, a ele Botelho, a autoria), e de quem herdou o argumento original de "A Corte do Norte". Este artifício determina, desde logo, uma enorme autonomia do objecto fílmico em relação à matriz literária: por um lado, o filme conserva o enigma do destino da Baronesa que se parecia com Sissi; por outro, a dimensão visual aponta para uma solução na medida em que a actriz, Emília de Sousa, aparece como prolongamento, mais ou menos óbvio, da figura, a que se substitui.


No entanto, nada é assim tão simples: o ovo de Colombo de escolher a mesma actriz (a fabulosa e perturbante Ana Moreira) para interpretar todos os papéis femininos principais constrói um labirinto representativo em que tudo se confunde e revela, ou seja: a semelhança de Rosalina com Emília, facilitando a identificação, não é maior nem menor do que com as descendentes da Baronesa, Rosamund e Águeda, ou com o seu duplo imediato e assumido, Elizabeth, Imperatriz da Áustria. A multiplicidade de tempos e de montagens em tortuosos "flash-backs" desdobra e reformula a hipótese de "thriller" numa saga familiar, iludindo a importância do mistério: nem se aspira a resolver nada, nem se oculta o objectivo de atingir, no fascínio de uma beleza fátua, feita de filtros, "travellings" sobre a paisagem recomposta, um falso decorativismo de época.

Como em quase todos os seus filmes, de "Conversa Acabada" ou "Tempos Difíceis" até ao mais recente e mal entendido "O Fatalista", Botelho interessa-se pelo "trompe l''oeil" que a matriz literária gera na matéria cinematográfica, levando-o numa outra direcção: um filme é um filme e os livros, os poetas ou a trama dramática desvanecem-se no desejo de simular alternativas, que dificilmente passam pela adaptação, pura e simples. Por isso, pouco conta saber se "A Corte do Norte" é, ou não, fiel (um filme não se reduz nunca a protocolos matrimoniais com o literário) ao romance que instrumentaliza - instrumentalizar é o termo adequado. Existe, por outro lado, no modo como se assume a transculturalidade do projecto (já "Tempos Difíceis" passava Charles Dickens para uma outra temporalidade, sem tempo bem definido, num Portugal abstractizado), o desejo infinito de corresponder a uma leitura de hoje, em que o passado histórico se arvora em gigantesca metáfora, mais ainda do que em Agustina. A problemática fulcral levantada poderá, pois, passar pelo seguinte: como se interroga, em 2009, o devir histórico fixado, já em retrospectiva, nos anos 80? Que sentido faz, em cinema, a reconstituição de época?

E chegamos à questão magna das relações intra cinematográficas: detecta-se, no filme, a sombra omnipresente de Manoel de Oliveira, em diálogo complexo que se inicia no prólogo do desembarque, a citar, de forma oblíqua, "Amor de Perdição", se prolonga nas rimas voluntárias com "Francisca" (as festas, um certo lado carnavalesco e auto exposto) e se cumpre nas analogias incontornáveis com "Vale Abraão" (o mesmo universo romanesco, um semelhante uso da voz "off"), como se o mundo de Oliveira constituísse a referência a superar, a fim de reafirmar as razões da diferença: um outro olhar sobre a mulher, não transformada em objecto mas instituída em sujeito metamorfoseador (e, por aqui, mais próximo do contexto agustiniano do que qualquer filme de Oliveira); uma atenção ao quadro dramático, composto no plano, não interessada, contudo, na fixidez da imagem final, como expressão de teatralidade, antes apostando na transparência, também ela falsa, de uma fotografia retocada.

Para que não se diga que "A Corte do Norte" emula o mestre portuense, convém lembrar o modo como se convocam outras matrizes: o Visconti de "O Leopardo" (mas também de "Senso", sempre ciente do distanciamento proposto), na cena do baile, até à dimensão operática, justificada pela narradora, a partir do texto romanesco - "La Traviatta" era a ópera preferida de Rosalina e a versão usada é a da Callas, com Giulini, em encenação de Visconti -, mas estendida para além da banda sonora, num excesso controlado; reminiscências de Buñuel, na estranheza de pormenores inseridos na acção; a "Madame Bovary" de Vincente Minnelli, para assinalar a pluralidade de abordagens possíveis ao motivo literário criado por Gustave Flaubert que se não esgotem na leitura de "Vale Abraão", livro e/ou filme.

A perspectiva particular da reconstrução da paisagem reveste-se igualmente de grande relevância: o simulacro da Madeira, presente nas filmagens "on location" mas também na transmutação operada em Sintra, por exemplo, desvela a opção por se subtrair a um "realismo" incómodo e desnecessário. O modo como se filmam as nuvens ameaçadoras e as abruptas falésias, ou se prescinde de traços dialectais, confere à acção uma dimensão onírica e descontextualizada, que contrasta com a rigor da fotografia, possível solução para a explicitação (e ocultação) do mistério. Tudo é fingimento e noção da virtualidade da imagem projectada, resposta directa (e fílmica) à materialidade inefável do romance de partida, seguido, por vezes, tão de perto que entendemos melhor a diferença obrigatória de discursos. E, se se trata de um "filme de mulheres" (de mulher), estranhamente encaixado numa estratégia de género, ilude-se, em definitivo, a componente melodramática. As "ternas guerreiras" (para parafrasear um título antigo de Agustina) de "A Corte do Norte" cristalizam-se no arquétipo do feminino evanescente e, ao mesmo tempo, dominante, até por via da acumulação: uma actriz conduz a acção (como a personagem, por ela encarnada, que mostra aos turistas os percursos da História), mas nunca escapa à atmosfera de sonho instaurado, desde o início, pelos filtros e "véus". Aos espectadores, como aos turistas da ficção reconstruída, cabe a função de ligar os fios da teia, entretanto revelada neste belíssimo jogo de espelhos.

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