Rania, a rainha revolucionária

A Forbes incluiu-a na lista das mais poderosas; a Harpers & Queen entre as mais belas e a Time viu nela "o rosto do feminismo árabe do século XXI". Em Lisboa, Rania recebeu o Prémio Norte-Sul por contribuir para o diálogo entre civilizações. Por Margarida Santos Lopes

a Sabem por que é que a rainha Rania da Jordânia criou o seu próprio canal de vídeos no YouTube, em 2007? Porque Barak Obama disse "Yes we can" e ela pensou: "So can I." Mas não só. Quem quiser conhecer as dez razões pode vê-la em http://www.youtube.com/watch?v=JPcw3fLeBHM, a imitar o comediante norte-americano David Letterman e a enumerar o seu próprio top ten. Há a divertida explicação de ambicionar competir com Madonna, que foi vista por quatro milhões de pessoas, a lavar o chão. E a mais séria, de não querer que o mundo veja os árabes com os olhos de Jack Bauer, o implacável agente da série televisiva 24, onde os muçulmanos são quase sempre os maus da fita.
O principal objectivo - e por isso, em 2008, o YouTube lhe atribuiu o primeiro Visionary Award e, ontem, partilhou em Lisboa, com Jorge Sampaio, o Prémio Norte-Sul - foi "quebrar os preconceitos e estereótipos". Não ultrapassou a popularidade dos 50 segundos de Madonna, mas a sua primeira gravação teve 1,4 milhões de visitas, suscitou 83 vídeos de resposta de outros utilizadores e gerou cerca de 6000 comentários.
Seria de esperar que uma rainha que é frequentemente capa de revistas famosas e até apareceu no programa de Oprah Winfrey já fosse conhecida de todos. Mas não. Dos Estados Unidos houve quem perguntasse se ela era casada com Michael Jordan, o que "muito fez rir" o rei Abdullah II. Por isso, no vídeo em que agradeceu o prémio do YouTube, Rania apontou outra justificação para esta iniciativa na Web: "Estou cansada de as pessoas pensarem que Jordan [Jordânia, em inglês] é um jogador de basquetebol."
É a vontade de Rania de "quebrar barreiras" que a leva hoje à Escola Básica Miguel Torga, na Amadora, onde crianças de origens, meios sociais e nacionalidades diversas são integradas num projecto apoiado pela Fundação Gulbenkian. A visita não foi sugerida pelos anfitriões portugueses, mas pela própria Casa Real jordana, para enfatizar a campanha da mais jovem rainha do mundo - tem 38 anos - em prol da educação. "Quando se educam meninas, há menos probabilidades de elas serem vítimas de violência e exploração, de casar mais cedo e de terem filhos prematuros", destaca Rania num vídeo, a propósito do Dia Internacional da Mulher.
Neste vídeo, em apenas "231 palavras" (porque "as mulheres usam 20 mil por dia e os homens 7000", mas são eles os mais ouvidos), Rania deixa também um aviso: "Há 41 milhões de raparigas afastadas das escolas que, em breve, se juntarão às 500 milhões de analfabetas", se o mundo não agir. As mulheres têm de ser mais interventivas - "gritar se for preciso" - para haver mais investimento na educação.
Os "crimes de honra"
Para a rainha jordana, a educação é fundamental para acabar com as desigualdades. "No que diz respeito às mulheres, não posso dizer que o mundo árabe é perfeito. As mulheres não têm direitos iguais - ainda! Mas há países que têm feito progressos excelentes. A violência contra mulheres não é exclusiva da nossa região. Em todo o mundo, uma em cada três mulheres é vítima de abusos. É uma vergonha mundial e nenhum país venceu essa batalha."
Entre os maiores abusos estão os "crimes de honra", que Rania admite serem cometidos a uma média de "20 por ano" só na Jordânia. "É horrífico, indesculpável e não têm nada de honra", sublinha a rainha em mais um dos seus vídeos. "Não é uma prática generalizada. Não tem nada a ver com o islão. Não é um indicador do estatuto da mulher na nossa cultura - e estamos a desafiá-lo."
Tem sido, porém, um confronto inglório. O rei bem tentou que os deputados proibissem tais crimes - raparigas assassinadas barbaramente por pais, irmãos ou primos para "limpar a honra" da família -, mas a maioria do parlamento, dominada pelos "tradicionalistas", que devem o poder às tribos beduínas, impede a punição dos que matam. No mínimo, serão sentenciados a uns meses de prisão.
A luta contra os "crimes de honra" deixou Rania numa rota de colisão com os sectores mais conservadores da sociedade. Os que acham que ela interfere demasiado na política. Muitos na Jordânia ainda se lembram de um incidente em 2002, durante um jogo de futebol, quando uma multidão gritou ao rei: "Divorcia-te dela! Divorcia-te dela." Nada disso perturba Abdullah II, que confessa continuar a pedir e a escutar os conselhos da mulher. Talvez por valorizar a sua opinião, a tenha "promovido" à patente de coronel das Forças Armadas (um pilar do regime).
Rania também é criticada pelos que acham que deveria ser mais activa. Entre eles estão os palestinianos, como ela - nascida, por ironia do destino, no mesmo ano (1970) em que a Jordânia cometeu o massacre do Setembro Negro: a expulsão de milhares de palestinianos (ainda hoje são metade da população) depois de Yasser Arafat ter tentado derrubar o então rei Hussein, pai de Abdullah II.
Em 2001, quando Israel desencadeava uma brutal ofensiva na Cisjordânia, os palestinianos do Reino Hachemita não compreenderam por que motivo a filha de Faisal Sedki Al-Yassin, um médico de Tulkarm, se ausentou do país quando a cidade dos seus pais estava a ser atacada. "Tenho consciência de que, para uns, nunca serei suficientemente jordana e, para outros, nunca serei suficientemente palestiniana", reconheceu a rainha.
Entre as mais poderosas
Há também os que censuram a sua quase obsessão pela indumentária e acessórios de luxo (entre os seus estilistas favoritos está o israelita Albert Elbaz), e por ter um avião particular (a Jordânia não tem recursos e é pobre). Não aceitam essa ostentação, mesmo depois de Rania ter feito alarido da decisão de pedir emprestada, a uma cunhada, a tiara que ostentou no dia da sua coroação em 1999. Era "um desperdício gastar dois milhões de dólares para um dia", alegou na altura.
Os que a compreendem são figuras como Giorgio Armani que sobre ela disse: "Tem um corpo de modelo e o porte de rainha que é - que mais se pode pedir?" A Harpers & Queen concordou, pois proclamou-a "a terceira mulher mais bela do mundo", em 2005. No mesmo ano, a revista Forbes incluiu-a entre as "100 mulheres mais poderosas do mundo", não pela formosura, mas pela sua participação em instituições como o Fórum Económico Mundial, a Unicef ou o Fundo para as Vítimas do Tribunal Criminal Internacional. E pelo seu trabalho em prol das mulheres, a Time retratou-a como "o novo rosto do feminismo árabe do século XXI".
"Ainda temos muito que andar, mas não nos podemos esquecer de quão longe já chegámos." A frase é de Rania e aplica-se a ela na perfeição. Oriunda de uma família abastada que imigrou de Tulkarm para o Kuwait, ela foi obrigada a deixar o emirado onde nasceu quando Saddam Hussein para aí enviou as suas tropas, em 1990.
De menina rica passou a refugiada, mas não foi para um dos muitos campos de palestinianos que a Jordânia acolhe. Formada na New English School do Kuwait, terminou em 1991 a licenciatura em Administração de Empresas na Universidade Americana do Cairo. Foi logo trabalhar para o City Bank e depois para a Apple Computer, em Amã. Foi aqui, em Janeiro de 1993, num jantar oferecido pelo príncipe Abdullah (ainda não era herdeiro do trono), que ambos se "apaixonaram à primeira vista". Dois meses depois anunciaram o noivado e a 10 de Junho casaram-se. Entre 1994 e 2005, tiveram quatro filhos: Hussein, Iman, Salma e Hashem.
O momento mais inesperado aconteceu em Fevereiro de 1999, quando o rei Hussein deserdou o seu irmão Hassan e escolheu como sucessor o filho primogénito. Abdullah e Rania, que até então levavam uma vida discreta, imediatamente se tornaram no centro das atenções. Hoje, dez anos depois, os súbditos ainda não parecem habituados ao ritmo da nova rainha, que viaja sozinha no seu blindado SUV, aparecendo sem aviso, vestida de YSL ou Chanel e com saltos altos, nas áreas mais remotas para dar "aulas de direitos humanos".

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