Irmã de Cleópatra era africana
A princesa ptolomaica Arsinoe, irmã mais nova de Cleópatra, teria mãe africana. A descoberta tem sido divulgada pela BBC, como aperitivo para um documentário que vai passar no dia 23
a Cleópatra VII, a última soberana da dinastia ptolomaica no Egipto - fundada por um general do macedónio Alexandre, o Grande - e uma das mais icónicas figuras da história universal, teria sangue africano? A hipótese será adiantada no documentário científico Cleópatra: Retrato de Uma Assassina, que a BBC transmitirá no próximo dia 23 e que se baseia em descobertas recentes da arqueóloga austríaca Hilke Thür. Não sendo improvável, a tese funda-se numa sucessão de especulações, umas mais fundamentadas do que outras.
A história começou em 1926, quando uma equipa de arqueólogos descobriu em Éfeso, na Turquia, um sarcófago octogonal com um esqueleto no interior. Para efeitos de estudo, separaram o crânio, que foi examinado e medido, mas que se perdeu durante a Segunda Guerra Mundial. O papel desempenhado por Hilke Tühr começa nos anos 90, quando estuda o túmulo e sugere que os ossos nele conservados pertenceram à irmã mais nova de Cleópatra (70/69-30 a.C.), Arsinoe. Os seus argumentos convencem boa parte da comunidade científica.
Thür pede então à Universidade de Medicina de Viena que indique uma equipa para proceder à análise laboratorial do esqueleto. A direcção do grupo recai num antropólogo, Fabian Kanz, que inicia a tarefa com a convicção de que a tese da arqueóloga não tem fundamento. "O método que usámos foi o de tentar excluir a possibilidade de o esqueleto ser o de Arsinoe", diz Kanz, citado pela imprensa britânica. "Tentámos todos os métodos à procura de algo que nos dissesse: estes ossos não podem ser de Arsinoe por causa disto ou daquilo." Mas não descobriram nada e, pelo contrário, o que foram concluindo tendia a dar credibilidade à hipótese defendida por Hilke Thür. Outro argumento em favor da tese, mas mais frágil, foi a conclusão de que as medidas tiradas nos anos 20 ao crânio desaparecido seriam compatíveis com um rosto alongado, que indicaria uma ascendência mista, possivelmente macedónia e africana.
Especulações aceites
Que o túmulo de Éfeso seja o de Arsinoe é, portanto, uma especulação fundada em argumentos que a generalidade dos egiptólogos aceita. Bastante mais controverso é o salto para a conclusão de que Cleópatra também teria mãe africana. Na verdade, não há nenhuma indicação segura de que as duas irmãs fossem filhas da mesma mãe. Eram, sim, filhas do mesmo pai: Ptolomeu XII, o soberano que procurou aliar-se, se não submeter-se, a Roma, e que foi seguido nessa política pela sua filha Cleópatra.
Ptolomeu XII teve cinco filhos: Berenice, a mais velha, Cleópatra, Ptolomeu XIII, Ptolomeu XIV e Arsinoe, a mais nova. Sabe-se que a mãe de Arsinoe se chamava também Cleópatra, embora, segundo explica José das Candeias Sales, um dos raros especialistas portugueses no Egipto ptolomaico, haja dúvidas se esta era Cleópatra V ou VI - ou seja, não se sabe se a quinta e a sexta eram ou não a mesma pessoa. Mas a própria escassez de informações sobre esta personagem pode indicar que se tratava de uma estrangeira, eventualmente africana, e que justamente por isso recebeu pouca atenção dos cronistas da época.
Em Alexandria havia mulheres oriundas de todo o império ptolomaico, sublinha José Sales. "Ao lado de louras provenientes da Grécia, e de outras mais orientais, vindas da Mesopotâmia ou da Índia, também deve ter havido umas mulatas africanas muito jeitosas", brinca Sales. Nada mais natural, portanto, e ainda mais tendo em conta os padrões algo libertinos dos Ptolomeus, que alguns dos soberanos tenham tido filhos destas mulheres estrangeiras. A primeira Cleópatra, em honra da qual todas as outras foram baptizadas, era aliás, lembra o historiador, uma princesa síria, mulher de Ptolomeu V.
Diferenças políticas
As descobertas de Thür mostram que é altamente provável que Arsinoe fosse meio africana, mas não se sabe se esta nasceu do mesmo ventre que Cleópatra, cuja mãe se ignora. José Sales lembra que as moedas com a sua efígie mostram um rosto "perfeitamente helenizado, sem quaisquer traços de negritude".
No entanto, a descoberta da ascendência africana de Arsinoe, caso venha a ser comprovada, é suficientemente interessante em si própria, atendendo ao percurso desta irmã mais nova de Cleópatra. Quando o pai, Ptolomeu XII, parte para Roma, Arsinoe assume o poder no Egipto, juntamente com o seu marido Áquila, um general egípcio. A circunstância de uma filha mais nova de um soberano dispor de poder e dinheiro suficientes para armar um exército era relativamente vulgar na época, diz José Sales. "Através de sucessivos casamentos e das terras que vão recebendo em dotes de pais e doações de maridos, algumas destas mulheres ptolomaicas enriquecem estrondosamente e tornam-se verdadeiras potências económicas."
Quando Júlio César chega ao Egipto, aliando-se à facção de Cleópatra, Arsinoe é o alvo a abater. César vence-a e, em 46 a.C., mostra-a em Roma, como um troféu de batalha, juntamente com Vercingetorix, derrotado na Gália. O romano poupa-lhe a vida e Arsinoe é exilada para Éfeso, onde se dedica ao culto da deusa Artémis. Mas Cleópatra sabe que tem nela uma potencial ameaça e, sozinha ou com a cumplicidade de Marco António, ordena a sua execução.
Tendo em conta que Arsinoe defendia um Egipto independente da tutela romana, e que para tanto se terá apoiado na população maioritariamente africana, as descobertas de Thür poderão trazer uma nova luz à compreensão das escolhas políticas desta irmã mais nova de Cleópatra.