Mais de 60 anos depois, os filhos da guerra andam à procura dos pais
Em meados de Fevereiro, Berlim mostrou-se disponível para dar a dupla nacionalidade aos filhos de mãe francesa e pai alemão que nasceram durante a ocupação nazi e passaram décadas sem saber de onde vinham, em muitos casos até hoje. Em França, estes são os dias, absolutamente históricos, em que o último grande tabu da Segunda Guerra Mundial começa a ser quebrado
a Claudine Georges teve uma mãe, um pai e sete irmãos com quem nunca ficou realmente bem nas fotografias de família. É a primeira coisa que nos diz na noite em que lhe telefonamos a pedir que nos conte a vida dela, apesar de não termos nada para a troca."Francamente, sempre foi muito óbvio que havia alguma coisa fora do sítio", diz. "Todos os meus irmãos eram morenos, com cabelos e olhos castanhos; os meus pais também. Eu era muito loira e tinha olhos azuis. Mas naquela altura, não fazia demasiadas perguntas: eu era diferente, era tudo." Passou 23 anos sem saber em quê, até que um dia, quando já não vivia com a família, o pai lhe bateu à porta e lhe disse que ela era filha de um alemão que os avós maternos tinham alojado durante a ocupação nazi em La Jarne, uma aldeia muito próxima da linha de demarcação a partir da qual a França era livre.
Claudine ficou "aliviada" por não ser sangue do sangue daquele homem "instável, fraco, que se deixava levar para os cafés pelos amigos" e cujo salário nem sempre entrava em casa. "Pode parecer estranho, mas a notícia não me chocou, absolutamente. Eu já era adulta, pensei apenas: 'É assim que as coisas são, ponto final'." Ainda é assim que pensa: a história dela não é uma história exemplar.
Para a maior parte dos "filhos da guerra", a notícia de que o nome que não aparece no bilhete de identidade é de um soldado alemão com quem a mãe, voluntariamente, dormiu numa altura em que os nazis eram a besta, é devastadora. O ambiente furiosamente antigermânico do pós-guerra - em que muitas destas mulheres foram tosquiadas e exibidas nas praças centrais das aldeias com cruzes suásticas tatuadas, às vezes com facas, na testa, e outras acabaram mesmo presas por "colaboração horizontal" com o inimigo - transformou estes romances que produziram uma descendência estimada em 200 mil pessoas num tabu que a França começa agora a quebrar, e que a Alemanha pôs na agenda política ao mostrar-se disponível, em meados de Fevereiro, para dar a dupla nacionalidade aos "filhos da guerra" que a queiram solicitar. Tem sido um bocado como "sair do armário" - às vezes contra as próprias mães que, nos casos em que ainda estão vivas, nem sempre querem lamber essa ferida por cicatrizar.
Por ter uma mãe que não quis falar, aos 65 anos Claudine continua à procura do pai - ou de algum meio-irmão que possa ajudá-la a perceber de onde vem, e que tenha uma fotografia onde os cabelos loiros e os olhos azuis dela não pareçam fora do sítio. "Passaram-se anos e anos sem se voltar a falar no assunto. Os meus pais divorciaram-se porque as coisas nunca correram bem. A minha mãe tinha engravidado com 15 anos e os meus avós arranjaram-lhe um marido à pressa. Casou-se a 31 de Dezembro de 1943 e eu nasci no dia 16 de Janeiro seguinte; ele percebeu imediatamente que não podia ser meu pai e abandonou-nos. Voltou dois anos depois e teve sete filhos com a minha mãe, mas na prática ela sustentou-nos sozinha. Quando quis divorciar-se dela, litigiosamente, o meu pai legal pediu-me para me pôr do lado dele. Eu disse-lhe que não e foi aí que ouvi o que ele tinha para me dizer há 23 anos: 'Sabes, a tua mãe não é flor que se cheire. Eu não sou teu pai'", explica ao P2.
Uma "asneira"
Claudine viveu bem com esse vazio até às grandes comemorações dos 60 anos do desembarque aliado na Normandia. "A ideia começou a perturbar-me e comecei a querer saber, mas a minha mãe era um túmulo. Insisti muitas vezes até ela me dizer que sim, tinha feito 'uma asneira', e a seguir: 'Não digas nada aos teus irmãos'."
Nisto, a história de Claudine é absolutamente comum: só começou a pôr cartazes a dizer "procura-se", na Internet, depois de fazer 60 anos. É típico destes "filhos da guerra", e também é típico de um país que demorou a enterrar os mortos, para poder agora tratar dos vivos.
"Porque é que foi preciso esperar tanto tempo?", perguntou a revista L'Express a Jean-Paul Picaper, que em Maio de 2004 publicou Enfants Maudits (Crianças Malditas, em tradução livre), a primeira grande investigação sobre um tema até aí varrido para debaixo do tapete dos não-ditos da história francesa contemporânea e apenas assumido um ano antes, com o documentário Enfants de Boches, de Christophe Weber e Olivier Truc: "Sem dúvida porque foi preciso estudar tudo o resto antes: as deportações, os campos de concentração, os horrores da guerra." Mas também porque estas pessoas estavam demasiado ocupadas a viver as suas vidas, e porque muitas dessas vidas foram terríveis.
Voltamos a pegar no telefone, mas desta vez marcamos o número de Jeanine Nivoix-Sevestre, de 67 anos, presidente da Amicale Nationale des Enfants de la Guerre (ANEG), e isto é a França ocupada em 1941: "A minha mãe trabalhava no bar-restaurante da aldeia de Cambes-en-Plaine, a cinco quilómetros de Caen, quando conheceu o meu pai, um soldado alemão. Estiveram juntos cerca de um ano, ela engravidou, tinha 16 anos quando eu nasci. A família não aceitou a situação e expulsou-a de casa; ela ficou comigo, sozinha, até morrer nos bombardeamentos aliados, em 1944", diz Jeanine ao P2. Viveu "à esquerda e à direita, como se costuma dizer, em pensionatos, orfanatos, amas", chegou a estar em casa de um tio e acabou nos avós. "Foi aí que tudo se estragou, porque o meu avô deu-me uma vida infernal. Era uma pessoa odiosa. Eu só soube porquê aos 13 anos: para mim eu era apenas uma órfã, não havia mistério nenhum. Mas houve uma altura em que precisei dos meus documentos e vi: pai desconhecido. Perguntei às minhas colegas da escola o que é que aquilo significava. Toda a gente da aldeia sabia que eu era filha de um alemão. Era uma aldeia de 300 habitantes, a história da minha mãe não tinha passado despercebida."
Jeanine demorou 60 anos a falar disto como fala agora com uma estranha que lhe telefona depois das dez da noite. Saber que o pai era um ocupante nazi foi "um choque brutal". "Acho que foi a vergonha que me bloqueou. Vergonha de ter uma mãe solteira e um pai que era soldado do Exército alemão", diz. Ficou muda, esteve dois meses e meio sem falar: "Na escola a minha professora perguntava-me o que é que se passava na minha cabeça, mas eu não conseguia. Fui internada num hospital psiquiátrico e quando saí as aulas estavam a recomeçar. Nem sequer me passou pela cabeça tentar saber quem era o meu pai. Comecei a procurar em 1972, já com filhos, quando a melhor amiga da minha mãe me escreveu a dizer que tinha conhecido muito bem o meu pai, que era austríaco e se chamava Werner. Mas durante muitos anos eu procurava episodicamente, quando sentia necessidade. Tinha quatro filhos, trabalhava, e tudo isso estava primeiro."
Tudo estava primeiro, sobretudo nos anos do pós-guerra em que os filhos da ocupação - ou "bastardos de boche", como ficaram infamemente conhecidos - eram uma prova demasiado evidente de que a França tinha colaborado, e muitas vezes por razões menos nobres do que as destas miúdas que, aos 15 ou 16 anos, se perdiam de amores por um rapaz fardado que falava uma língua estrangeira.
Até 2004, o destino dessas mulheres e dessas crianças era uma coisa que nunca tinha existido. A partir desse ano, toda a gente passou a ter uma história para contar - e, apesar da doença de Alzheimer, Renée pôde contar à L'Express que nunca se esqueceu desse dia da Primavera de 1944 em que a fizeram subir para um estrado em frente à igreja e a acusaram de ser "a puta de um boche".
"Estava a limpar a sala do hotel da minha tia, requisitado pelos alemães, e chegou um vizinho, com três camponeses, que me disseram: 'Tu vens connosco'. Éramos 30. Trataram-nos como porcas, raparam-nos o cabelo. No fim daquilo regressei ao hotel. Não era longe, mas o caminho pareceu-me tão longo. A minha filha tinha ficado lá, não tinha necessidade de ver aquilo", recorda. O soldado alemão de quem engravidou foi o primeiro amor da vida dela: "Eu estava apaixonada como só uma miúda de 16 anos está apaixonada. Um bocado tonta, a correr à noite para me encontrar com ele. Falávamos por gestos, ele deu-me um anel. E um dia foi-se embora sem saber que ia ter uma filha."
Vítimas inocentes
Tal como Renée, outras 20 mil francesas foram tosquiadas, metade das quais por relações sexuais com o inimigo. "A ideia de ter havido mulheres que se deram ao luxo de ter prazer, e com isso escaparam ao sofrimento comum em tempos de privação, era insuportável. Para a pátria, estas mulheres cometeram simbolicamente um adultério nacional. A colaboração horizontal era o símbolo absoluto da derrota da França - era a França que se deitava, através delas", explica o autor de Enfants Maudits.
Claudine, Jeanine e Mylène, a filha de Renée, são três dos cerca de 200 mil filhos da guerra que começam agora a querer esclarecer essa zona cinzenta das relações sentimentais durante a ocupação. Alguns esperaram que as mães morressem para assumir uma identidade que é, também, "a identidade da Europa", como sublinhou o ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Bernard Kouchner, em Abril do ano passado, num discurso histórico em que lamentou a surdez de Paris e de Berlim perante "a desgraça das últimas vítimas inocentes de um conflito que nem sequer chegaram a conhecer".
Muitas dessas mulheres sabiam os riscos que corriam - a partir de Fevereiro de 1942 começou a circular um panfleto ameaçando as "fêmeas ditas francesas" que dessem "o corpo aos alemães" - mas o facto de se terem arriscado não significa que fossem pró-nazis.
"É preciso lembrar que mais de 90 por cento dos soldados da Wehrmacht [Forças Armadas alemãs], sobretudo nos primeiros anos, eram incorporados à força e não simpatizavam com o nazismo. De resto, também eles corriam riscos ao infringir a lei racial em vigor", sublinha Picaper. O regime hitleriano proíbe o casamento e as relações sexuais com francesas não-arianas, a não ser no contexto de uma prostituição severamente regulamentada - ao mesmo tempo que encoraja os seus soldados a procriar com norueguesas e holandesas, um trabalho duro mas que alguém tinha de fazer em prol da super-raça ariana que estava nos planos do Terceiro Reich.
Histórias com final feliz
Discriminados nas escolas e nas aldeias, muitos filhos da guerra tiveram infâncias traumáticas como a de Gérard, cuja mãe, uma rapariga de Saint-Malo que passava 12 horas por dia a depenar frangos numa cave, se apaixonou por um oficial da marinha alemã: "Bateram-me, cuspiram-me na boca, obrigaram-me a engolir o meu próprio vómito e a comer pulgas, morderam-me os dedos - e isto tudo porque eu era o filho de um boche. Ela nunca me disse, mas eu ouvia os boatos."
A história de Gérard, sim, é uma história exemplar - uma espécie de património comum à maioria dos 231 associados da ANEG (números de Janeiro, porque, diz Jeanine, todos os dias a associação recebe pedidos de adesão), fundada em 2005, depois da primeira conferência internacional dos filhos da guerra, em Berlim, com o apoio da WASt, o arquivo alemão que gere mais de 18 milhões de ficheiros de combatentes da Segunda Guerra.
É a essa tábua de salvação que pessoas como Jeanine e Claudine se agarram, agora que andam à procura do pai. "129 dos nossos associados já encontraram as suas famílias. É uma vitória incrível, tendo em conta que muitas vezes temos pouquíssimos elementos e as famílias tiveram as suas bocas fechadas ao longo de todas estas décadas", sublinha Jeanine.
O site da ANEG está cheio de cartazes como os delas, que dizem "procuram-se", mas também de histórias que terminam muito melhor do que esperaríamos, com meios-irmãos que se conhecem depois dos 60 e ficam a ser da família para o resto da vida. É o tipo de final feliz que encontrámos na entrevista de William Falguière ao jornal La Provence: "Depois de ver o documentário da France 3, contactei a WASt e descobri que tinha duas irmãs e um irmão. Escrevi-lhes e responderam-me com uma longa carta, cheia de fotografias. Encontrámo-nos pela primeira vez em Dezembro de 2003, na Baviera, e revemo-nos frequentemente. Eles dizem que eu sou o mais parecido com o meu pai - e que finalmente a família está completa."
Eliane Trincal ainda foi a tempo de conhecer o pai: "Foi uma grande surpresa para ele. Não sabia que eu existia. Mas olhou para mim e disse: 'Bem, não posso negá-lo, és obviamente minha filha'."
Claudine continua a procurar. Tem medo do que possa encontrar - de "mexer demasiadas coisas", de perturbar uma família que nem sequer sabe que ela existe. Jeanine acha finalmente que está muito perto, aos 67 anos. No dia em que lhe telefonamos recebeu uma carta com fotografias de soldados alemães que estiveram estacionados na aldeia da mãe, e vai metê-las num envelope para Berlim. Não quer exactamente a dupla nacionalidade: quer saber mais da história do que a metade que lhe contaram.