Reabrir hospital de Sintra deixou Misericórdia sem património

O projecto "foi um sonho que se tornou pesadelo", resumiu um actual dirigente da Santa Casa da Misericórdia de Sintra, que agora procura reerguer-se

a O património imobiliário da Santa Casa da Misericórdia de Sintra serviu para saldar dívidas bancárias. O antigo hospital da vila foi cedido ao banco Efisa. Um documento interno aponta para gastos de 8,6 milhões de euros sem qualquer proveito para a instituição e o seu autor garante levar o caso ao Ministério Público (MP).A instituição sintrense, que remonta a 1545, é fundadora da União das Misericórdias Portuguesas e possuía um vasto património imobiliário. O antigo hospital da vila encerrou há mais de dez anos, sem condições de funcionamento. A Misericórdia iniciou a sua recuperação como unidade de saúde. Segundo as contas de 2007, o projecto para reabrir o hospital, que arrancou em 2002, "obrigou a um investimento de 2,8 milhões de euros (mais os 750 mil euros investidos pela Nova Saúde) e serão ainda necessários cerca de 1,1 milhões para iniciar a actividade". E já em 2008 admitia-se: "Há dúvidas sobre a rentabilização do investimento, tendo em conta os valores já investidos, tempo decorrido e condições de exploração do espaço".
O relatório informa ainda que, em 2002, foram adquiridas as empresas Anjos da Noite (serviços médicos domiciliários) e Cligest (higiene e medicina no trabalho) por 2,5 milhões de euros. A partir de 2003, acrescenta o documento, realizaram-se "prestações suplementares" na Anjos da Noite "que ascenderam a 1,3 milhões de euros" até finais de 2006.

"Feira de vaidades"Perante este cenário, a mesa administrativa empossada em Janeiro de 2007, liderada por João Lacerda Tavares - que sucedeu no cargo de provedor ao seu pai, Eduardo Lacerda Tavares -, encetou uma reestruturação para centrar a actividade nas áreas da infância, idosos e acção social. As medidas não foram suficientes para estancar o endividamento. Em Julho de 2008, Carlos Soares Catarino apresentou à mesa administrativa um ponto da situa-
ção na área da saúde. O documento contabiliza que, entre 2002 e meados de 2007, se gastaram 8,618 milhões de euros, dos quais 4,074 milhões com quadros contratados para a gestão do hospital (2002/2005), 790 mil euros para pagar a quadros para gerir a Anjos da Noite (2002/2008), e 3,135 milhões reportaram-se a custos vários com a Anjos da Noite (2002/2004).
Segundo o documento, um administrador delegado terá recebido 1,183 milhões de euros, acrescidos de 112.500 euros, pelo mesmo cargo na Anjos da Noite, de 2002 a 2004. Um secretário-geral da Misericórdia terá recebido 335.437 euros, de 2005 a mea-
dos de 2007. A abertura das clínicas no Parque das Nações e na Maia (Anjos da Noite), entretanto fechadas, custou 100 mil euros.

"Gestão danosa"Soares Catarino classifica a gestão da mesa administrativa, de 2002 a 2006, como "danosa" e que a Misericórdia foi "transformada numa imensa feira de vaidades pessoais, desrespeitando a instituição e os seus princípios". Em Agosto de 2008, defende a negociação com o banco Efisa em relação ao hospital - mesmo admitindo que não houvesse acordo, "dado o momento que atravessa a Sociedade Lusa de Negócios", detentora do banco -, mas propõe em alternativa uma sociedade com a instituição universitária e serviços de saúde Cespu (60%), Misericórdia (20%) e outros (20%) para construir um novo hospital em Sintra. O autor das propostas foi expulso da Misericórdia. Carlos Soares Catarino, que continua como gestor da Anjos da Noite, apenas confirmou ao PÚBLICO que elaborou os documentos e que está "a preparar uma queixa ao MP".
Uma assembleia da Misericórdia, em Outubro de 2008, deliberou abrir mão do património para a sua viabilização financeira. A cedência do alvará da farmácia da vila foi uma das medidas. Outra foi o encerramento do Centro do Pendão, que tinha prejuízo mensal de oito mil euros.
De acordo com a acta, a assembleia aprovou a cedência de 100% do capital da Anjos da Noite/Cligest, uma vez que, nas palavras do provedor, estavam "na iminência de falir, com um endividamento de 1,8 milhões de euros": "Mesmo que seja feita uma cedência a custo zero, a Santa Casa e os gerentes libertam-se de um grande e grave problema". As empresas foram negociadas com a Cespu.

Dívida reduzidaO provedor João Lacerda Tavares explica que as dívidas da Misericórdia totalizavam 12,2 milhões de euros quando tomou posse e que estão reduzidas a 3,5 milhões, após "um enorme esforço" de reestruturação. A procura do equilíbrio nas contas fez-se à custa de cedência de património e do despedimento de 67 funcionários e dispensa de prestadores de serviços em 2007. Medidas que Lacerda Tavares, também vereador do PSD na câmara, defende como necessárias: "O que me custa é ver a Misericórdia fechar".
"O desequilíbrio tem a ver com uma aposta muito forte na saúde", salientou o provedor, admitindo que o desejo de reabrir o hospital tenha levado a "eventuais erros de gestão". Lacerda Tavares escusa-se a comentar o documento de Soares Catarino - "é um assunto fechado". Quanto a uma possível queixa no Ministério Público, assegura ter "absoluta confiança de que os órgãos da anterior e desta gestão não tenham praticado alguma acção investigável". Até porque o anterior provedor, vice-provedor e tesoureiro prestaram "avales de um milhão de euros" sobre património pessoal. E espera que a "gestão fora de controlo" do passado não coloque em causa o trabalho da Misericórdia, que presta apoio a 80 idosos e dá assistência social a uma centena de famílias.
O anterior provedor, Eduardo Lacerda Tavares, justifica a expulsão de Soares Catarino por se revelar "um elemento perturbador" na instituição. Acrescenta que a Misericórdia foi vítima da "ânsia de abrir um hospital" e de pessoas que se apresentaram para resolver o problema, mas que só agravaram o endividamento.
"Os erros de gestão deram-se quando entrou o novo provedor", contrapõe o anterior vice-provedor, Humberto Figueiras, que responsabiliza João Lacerda Tavares por inviabilizar um acordo com a Cespu e de recusar a substituição das dívidas através de um empréstimo do Banco Europeu de Investimento em condições mais favoráveis que as da banca comercial. Adianta ainda que, apesar de o imóvel pertencer ao banco Efisa, "há uma hipótese de o centro de saúde ir para lá". A actual unidade funciona num prédio de habitação junto à estação da CP e o concelho possui 124 mil utentes sem médico de família.

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