A poeira do fim

Luís Carlos Patraquim é hoje o mais importante poeta africano de língua portuguesa, juntamente com o angolano Ruy Duarte de Carvalho. Publicou sete livros em trinta anos: "Monção" (1980), "A Inadiável Viagem" (1985), "Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora" (1992), "Mariscando Luas" (1992), "Lidemburgo Blues" (1997), "O Osso Côncavo" (2005) e "Pneuma" (2009).

O mote da nova colectânea é dado na secção inicial, "Os nomes", homenagem a poetas moçambicanos falecidos (entre os quais Craveirinha, Rui Nogar, Sebastião Alba, Alberto de Lacerda ou Noémia de Sousa). A expressão "nomes" tem aqui um duplo sentido. Há uma noção pessimista de que os escritores, com o tempo, passam a ser apenas nomes, que poucos conhecem e ninguém lê. Mas Patraquim também usa "nomes" como declinação dos "founding fathers" da cultura moçambicana contemporânea, e por isso estas elegias redimem das cinzas os poetas evocados. Patraquim caldeia citações, detalhes biográficos, episódios pessoais, mas em vez de um exercício sentimental temos a celebração de um legado.

Os mestres e amigos já não são corpos mas estão presentes como espírito. Um espírito não metafísico mas poético, memória colectiva de uma nação e dos indivíduos que nela vivem ou viveram.

É pois de uma transfiguração que se trata. Eis um excerto do notável poema sobre Rui Knopfli: "(...) de nenhuma épica te armaste / E nem lança, pois de Heitor cedo te chegou / A poeira do fim, intervalada com ânsias de sábado, / O olhar panorâmico sobre uma certa colina / E uma chuínga à Sterlling Hayden com sabor a manga. / (...) E te oiço na gravidade do violoncelo, o do que viu a luz, / Mais a Saraband a gin tónico e Bach no pick up da Polana, / Entre revelações a vermelho e uma outonal inclinação / Pelas folhas caídas, as da infância (...)" (págs. 24-25). Até a grafia errada de Sterling Hayden, provavelmente um lapso, passa sem reparo, como se fosse uma daquelas recordações com lacunas, mais importantes como imagens do que como factos.

Outros poemas assumem um sopro, digamos, herbertiano, mas em registo minimalista, feitos de colagens, exaltações, anotações fulgurantes.

Uma espécie de desmedida bem medida, que traz o talento da brevidade da melhor poesia africana e a capacidade de tornar três versos numa meditação. Patraquim chama-lhe "fragmentária Ciência". Um exemplo: "e depois dizem que morremos / a taça perdida / os cavalos de jade / a minha espada // ainda lhes ouço as vozes / com a neblina de Agosto em Rudnik / e o cordeiro em silêncio // as mãos estão aqui / e o vinho regressa à fonte // e depois dizem que morremos" (pág. 55).

A força destes poemas significa que as muitas referências mais ou menos herméticas não dificultam a leitura dos poemas, verbalmente coesos. O que é Rudnik? A cidade polaca? E a que propósito? Pouco importa, porque é um simplesmente um nome numa toada, uma toada que termina naquele sarcasmo que, uma vez mais, diz respeito à morte.

É a morte e à memória que Patraquim sempre regressa. Assim como celebrou os seus progenitores culturais, escreve uma bela elegia ao pai: "Não fora isso e a linha entre continentes, /Ao de leve esfarelando-se em teu corpo, / E a mão que um dia se abriu e ora / Pousa o ultimo tremor sobre o lençol, // E o teu silêncio, o teu silêncio, onde / Florescem, sangrentas, as acácias da Rua de Lidemburgo / E Lagos estremece em azul e punge / Uma solidão ática e um boi se recolhe / No labirinto da aorta que infla, // (...) A tua cacimba lenta submergindo-te o rosto (...)" (pág. 49). Essas acácias sangrentas são uma pungente imagem da poesia de Patraquim, uma perpétua elegia moçambicana.

Exceptuando um texto final em prosa, mais típico e cansativo (o velho que representa todo um povo), não encontramos nestes poemas nenhum folclore fácil, nenhum comprazimento em africanismos serôdios. "Pneuma", em grego, significa "respiração", e a palavra é geralmente usada como sinónimo de "espírito". Trata-se, mais propriamente, da comunhão com o espírito. E é dessa comunhão que Patraquim se ocupa. Um dos poemas sugere um equivalente menos transcendente, comparando a materialidade imaterial da memória à experiência do cinema.

O poeta prefere dizer "cinemas": os edifícios, os filmes e a recordação de tudo isso. "Antes que deus o enquadre / E disponha a luz / Não te esqueça o espelho ampliando / As ancas da ragazza blonde; // Ela retoca os lábios / E o cálamo demora-se na memória, / Ondeia o cenário, les rideaux rouges / Que se abrem, oh my lovely / Mkulukumba; // E se escreves o guião sobre a toalha, / O viático para o tabaco / E uma storia del pensiero orientale / Para ler depois; / Antes que deus o enquadre / e faço do espelho seu sibilante / espaço off;" (pág. 36). Quem é essa Mkulukumba que sugere a fordiana Clementine? Pouco importa. A emoção hábil e genuína torna transparente mesmo aquilo que não entendemos.

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