Sahar, 18 anos, 4 vezes presa por não querer fazer a guerra
Aos 12 anos foi a uma aldeia palestiniana. Aos 14 viu o muro, os checkpoints, os soldados
a dispararem. Aos 18 recusou ser recrutada e nessa noite já dormiu na cadeia. Em Israel, onde o Exército está em cada casa, Sahar faz o que poucos ousam. Os reservistas Arik e Yitzhak recusam-se a servir a guerra e pagam por isso, no trabalho, na família, entre amigos.
Por Alexandra Lucas Coelho, em Jerusalém
a Esta é a primeira manhã livre de Sahar. Quando o P2 lhe ligou, estava numa base militar a receber os papéis da libertação. O Exército de Israel desistiu finalmente de a incorporar, depois de ela se ter recusado quatro vezes - e quatro vezes ter sido presa.
Aos 18 anos tem um acne de 18 anos, mas olha e fala como quem vê o que muitos israelitas nunca viram. Responde com uma precisão melancólica. Parece preservar energia e saber para quê.
E ei-la cercada por um bruá de almoços ligeiros, num café do centro de Jerusalém, cidade onde nasceu - Sahar Vardi, filha de uma artista já morta e de um professor de Grego e Latim da Universidade Hebraica: "O meu pai é muito activista. Foi soldado de combate. Fez a primeira guerra do Líbano como reservista, mas não esteve em Sabra e Chatila. Na Primeira Intifada fez um serviço e depois recusou. Esteve na prisão um mês e nunca mais foi chamado."
Em Israel, o serviço militar é obrigatório para homens e mulheres, geralmente recrutados aos 18 anos. Os homens têm de cumprir três anos, as mulheres dois. Depois, os homens mantêm-se na reserva até aos 51 e as mulheres até aos 24.
Há grupos dispensados (as judias ortodoxas, boa parte dos judeus ortodoxos e dos árabes israelitas), mas a maioria dos cidadãos serve nas forças armadas. Além disso, o que se faz como soldado afecta a vida civil. Um soldado de combate terá benefícios (académicos, profissionais, fiscais) em relação a um soldado burocrata. E todos os soldados têm benefícios sobre os não-soldados.
As forças armadas israelitas - das mais sofisticadas e bem equipadas do mundo - são o pilar do Estado de Israel, nascido e crescido em guerra contra os inimigos à volta, e até hoje sem fronteiras estáveis. Mas, além disso, estão em cada casa israelita. Mesmo alguém que não tenha servido como soldado tem sempre alguém próximo a servir, o irmão, o pai, o filho.
E é por tudo isto que se torna tão difícil recusar. Há cunhas, e uma fatia razoável de recrutáveis (25 por cento dos homens) fica dispensada por incapacidade física ou mental. Mas poucos são publicamente objectores de consciência. Isso paga-se, como Sahar sabe desde pequena.
Nos territórios
Quando o pai se tornou "mais activo" contra a ocupação, na Segunda Intifada, ela tinha dez anos. "E tinha 12 quando fui com ele aos territórios palestinianos. Fomos alargar a canalização de água de uma aldeia e plantar árvores. Era uma aldeia onde estavam a pôr a vedação."
Aquilo a que as autoridades chamam "barreira de separação" e em certos troços é um muro de betão e noutros uma vedação. "Naquela aldeia não se via muito o que é a ocupação, são palestinianos educados, têm trabalho, mas depois comecei a ouvir as histórias deles. Foi o princípio do meu activismo."
Integrou então o movimento Peace Now (o mais alargado e mainstream em Israel), a juventude do Meretz ("que está à esquerda do partido") e o movimento de refuseniks (os que se recusam a servir nas forças armadas).
E se ainda tem este ar de miúda, imaginem aos 14 anos. "Assinei no 9.º ano a carta que os do 12.º escrevem a recusar serem alistados. Foi por essa altura, em 2004, que fui a Bil'in a primeira vez."
Bil'in é uma aldeia na Cisjordânia que se tornou símbolo do muro e do crescimento dos colonatos. Todas as semanas há manifestações de protesto e o Exército israelita dispersa os contestários com gás e balas de borracha. Regularmente há feridos, alguns graves.
"Foi a primeira vez que se tornou óbvio para mim o que era a ocupação, porque vemos o muro, os soldados a disparar, e como os palestinianos vivem os checkpoints, onde toda a gente está à espera." Por causa do risco, Sahar não disse ao pai que ia a Bil'in. Quando ele descobriu, continuou a ir, desobedecendo-lhe.
E a seguir foi a Hebron.
De todas as grandes cidades palestinianas da Cisjordânia, Hebron é a mais tensa, continuamente. Tanto judeus como muçulmanos crêem que no coração da parte antiga está o túmulo de Abraão (Ibrahim, no islão). Algumas centenas de colonos judeus, considerados os mais hostis dos territórios ocupados, vivem junto ao sítio sagrado, guardados por milhares de soldados. Frequentemente há ataques, casas palestinianas vandalizadas, gente ferida.
"A violência dos colonos é muito visível ali: como os soldados os protegem e os colonatos vão roubando terra, expulsando os palestinianos lentamente, mas de vez", conta Sahar. E está a falar de um lugar que faz parte da sua própria origem. "A minha família veio do Iraque, de Itália e da Polónia, e está há sete ou oito gerações aqui, mas uma parte era de Hebron. Antes de 1935, os rabinos de Hebron eram os meus familiares. E hoje Moshe Levinger, o rabino de extrema-direita, vive na casa que o meu bisavô construiu."
Hebron fica no Sul da Cisjordânia, mas Sahar também conheceu entretanto o Norte: "Nablus, Jenin, Ramallah, Qalqilia..." Tudo isto são cidades palestinianas, e Israel proíbe os seus cidadãos de lá entrarem. Como é que estes activistas fazem? "Mentimos. Nos checkpoints gaguejamos em inglês, dizemos que somos estrangeiros e deixámos o passaporte no hotel. Em Ramallah é mais fácil entrar, mas em Nablus e Jenin é muito difícil."
Jenin "é o mais terrível", diz. "Fomos num táxi palestiniano até ao centro da cidade em 2006 e estava vazio. Foi depois de os soldados matarem uma criança lá, e os pais doarem os órgãos a crianças judias [ver PÚBLICO de 2/2/2009]. Fomos ver esses pais."
Não querer saber
Antes da Segunda Intifada, os israelitas podiam andar entre Israel e a Cisjordânia ou a Faixa de Gaza. Hoje, não entram nas cidades, e Israel interdita Gaza a todos os seus cidadãos, incluindo jornalistas. Isso faz com que os israelitas cada vez mais desconheçam os territórios, como se tudo se passasse num limbo irreal habitado por uma massa indistinta - "os palestinianos", ou "os árabes".
Sahar acha que a interdição de ir aos territórios convém a muitos. "Se queremos realmente saber o que é o outro lado, sabemos. Mas as pessoas não querem. Há uns tipos maus, fazemos o que é preciso para nos protegermos, às vezes corre mal, mas é a vida. É muito mais conveniente para as pessoas que seja assim."
O que é que acontece quando ela volta para contar o que viu? "Na minha turma, alguns querem ouvir, mas para eles são histórias. Não entendem que é a vida dos palestinianos, não é uma anedota. Mesmo eu, que vi, não posso ter ideia do que é esperar num checkpoint cinco horas todos os dias. Portanto, para quem não viu, tudo isto ainda é mais longínquo."
O que é que os colegas dizem? "Tentam justificar os soldados, dizer que eles procuram tornar as coisas menos más. Porque sabem que para o ano podem ser um daqueles soldados."
Na escola de Sahar, 90 por cento dos estudantes fazem mesmo o serviço militar. "Dois foram dispensados por razões médicas, e ofereceram-se como voluntários! E é uma escola relativamente de esquerda, com os filhos da classe média alta. O espírito é: sim, a ocupação é má, mas a política não tem nada a ver com o Exército. O Exército é profissional, é um dever."
O próprio irmão de Sahar é, aos 22 anos, militar de carreira, num serviço de informações. "Ele acha que a ocupação é má, que a guerra de Gaza foi estúpida e não trará nada, mas está lá, no Exército, é parte daquilo, faz o que lhe mandam. O namorado da minha mãe é piloto da Força Aérea, reservista, e voa todas as semanas. Também é de esquerda e acha que tudo isto é mau, mas diz: sou um bom piloto, alvejo o que me pedem, não faço erros e isso é melhor para os palestinianos." Bombardeou o Líbano em 2006.
Sahar só tem 18 anos mas não se ilude. "Há uma expressão que é 'O bom soldado no checkpoint', género: 'Vou alistar-me para ser gentil com os palestinianos e melhorar as coisas.' Eu não acho que isto seja possível. No Exército seguem-se ordens. Fazer a ocupação sorrir não resolve nada. Pode-se sorrir para o palestiniano, mas ele vai esperar na mesma. O que quero não é uma ocupação melhor, iluminada. Não quero a ocupação, ponto."
A recruta
Este activismo custa a Sahar todo o tempo livre, sextas e sábados, e mesmo o tempo não-livre. "Fugi muitas vezes à escola para ir a manifestações". É difícil imaginar uma garota europeia que aos 14 anos se empenhe numa causa impopular, e aos 18 lá continue, cada vez mais firme.
"No ano passado, quando eu estava no 12.º, organizámos um grupo de 20 pessoas que reescreveu a carta de recusa, assinámos e mandámos para o ministro da Defesa e para o primeiro-ministro. Eu devia ser alistada em Agosto. No dia da chamada, fui ao escritório da recruta com o meu pai. Levaram-me para um lugar onde era suposto darem-me o uniforme, e foi aí que eu disse: 'Não vou aceitar, não vou servir.'"
Isto passou-se na base militar de Telavive, e os camaradas de Sahar prepararam uma manifestação. "Estavam quase 100 pessoas lá fora, com t-shirts a dizer: 'Nós recusamos servir.'" Há imagens no YouTube. Ela, entretanto, foi levada para "a sala das excepções", onde estava um oficial. "Disse-lhe que não me ia alistar. Ele mandou-me para julgamento no mesmo dia. O julgamento era só um oficial: 'Recusa-se a cumprir uma ordem, concorda com os factos?' Respondi: 'Sim.' Ele perguntou: 'É culpada?' Respondi: 'Não.' Neste tipo de julgamento, o máximo que podem dar aí é 28 dias de prisão. Ele deu-me sete."
Foi o início de uma saga. Já aconteceu essa saga custar muito tempo de liberdade. Um dos actuais líderes do movimento refusenik, Haggai Matar, foi condenado a dois anos, com mais quatro refuseniks, em 2002. "Esse foi o caso mais sério", diz Sahar. "O que aconteceu com eles foi que ao fim de sucessivas prisões foram enviados mesmo para tribunal militar."
Na noite da sua primeira condenação, Sahar já dormiu presa. "Era uma prisão militar, meia hora a sul de Telavive, beliches, chuveiros, um pátio. Só à noite éramos fechadas nas celas. Estava a transbordar, 83 raparigas para 66 camas. Tiveram de trazer colchões. A maior parte eram desertoras, por abuso de droga e desobediência. Eu era a única refusenik."
Quando estes sete dias acabaram, foi condenada a uma semana, e depois a 21 dias, e a mais 21 dias. "Ao todo, passei 56 dias na prisão." O Exército disse-lhe que não a dispensava "porque estava a meio de uma guerra contra os 'parasitas'". "Não reconhece os refuseniks, chama-lhes parasitas."
Sahar não quis alegar o que muitos refuseniks alegam. "A maioria diz que o Exército os deprime, o que não é mentira, e portanto tem razões psicológicas." É uma forma airosa de o Exército se desembaraçar deles. "Ao fim de um tempo dão ordem ao psiquiatra para os deixar ir, porque não querem que digamos que somos objectores."
Chegou a ser uma campanha nos autocarros e tudo: um "verdadeiro israelita" não foge à recruta. "A pressão social é muito forte. Tentaram passar leis segundo as quais, se não fôssemos ao Exército, não podíamos estudar Direito e Medicina. E depois, é ilegal perguntar o que se fez no Exército, mas o Exército dá cartões: um soldado de combate recebe um de ouro, um condutor ou um enfermeiro recebe um de prata, um burocrático recebe um de bronze. E um empregador pode pedir esse cartão. O Governo tenta assustar-nos com tudo, e a sociedade aceita."
Sahar não é militante partidária (deixou a juventude do Meretz quando o partido apoiou a guerra no Líbano em 2006). Um Estado israelita ao lado de um Estado palestiniano, é o seu ideal, ainda. "Não sei se seria possível agora, com tanto ódio dos dois lados. Depois desta guerra de Gaza, definitivamente não."
É possível impedir o sofrimento causando sofrimento?, perguntou na sua declaração de recusa, que é a recusa de "ser um peão dos políticos", mas também, sobretudo, de causar sofrimento. "Recuso-me a agir violentamente, debaixo de ordens ou não."
Agora sentada neste café, sem cartões do Exército e enfim livre, que pensa fazer? "Não sei, provavelmente vou para a universidade. Mas sei que quero viver aqui."