O Capitão Mitchell, personagem inofensivamente pomposa deste romance, gosta de elogiar (quase como quem gaba propriedade sua) o capataz dos seus estivadores, "esse homem entre mil", Nostromo, "um homem que vale o seu peso em ouro".
Nós preferimos elogiar "Nostromo", o romance, que, sendo o mais extenso de Conrad, vale cada uma das suas páginas, que são mais de 500. É um romance entre mil. A extensão deste livro (fortemente sublinhada pela sua complexidade estrutural e pela sua ambiguidade temática) parece ser, desde a sua publicação em 1904, uma das razões para alguma relativa impopularidade entre os leitores de Joseph Conrad (1857-1924) e pode, hoje ainda, causar alguma "desconfiança" em leitores mais voláteis.
E no entanto, digamo-lo desde já, "Nostromo" também se deixa ler da maneira viciante como é suposto ler um romance de "aventuras". Diga-se já, também, que os elogios do Capitão Mitchell não devem levar-nos a confundir Nostromo com um qualquer "herói" clássico ou moderno (ele será mais um anti-herói, e dos moderníssimos), sendo, por outro lado, francamente problematizável o seu estatuto de protagonista, num romance cujo subtítulo não é menos irónico na sua branca indeterminação: "Uma história da beira-mar".
Posterior a "O Coração das Trevas" e "Lord Jim", "Nostromo" é um portentoso romance político, uma ficção sobre a História enquanto ficção, invenção de sentidos, sobre ilusões individuais, ideológicas e revolucionárias num mundo crescentemente sobredeterminado por poderes económicos supranacionais e, por assim dizer, a-políticos. É um romance sobre o início da globalização imperialista do capitalismo liberal. Um romance moderníssimo, portanto (embora não necessariamente paródico ou caricatural). E até profético, a seu tempo. A acção decorre pelo final do século XIX num país imaginário da América Latina. Tão imaginário que até parece real. Conrad chamou-lhe Costaguana e descreve-o com boa cópia de pormenores, seja quanto à paisagem, seja quanto aos usos e costumes políticos.
Detém-se particularmente na sua Província Ocidental (depois República Ocidental, num arroubo secessionista) e em Sulaco, a capital dela, uma cidade pacata e quase esquecida (por força da geografia que os interesses britânicos nos caminhos-de-ferro tratarão de relativizar). A República de Costaguana terá, no máximo, uma História de "cinquenta anos de desordem", de acordo com o título do livro de um dos seus mais ilustres cidadãos, Don José Avellanos. De acordo com a Senhora Gould, da economicamente mais poderosa família da cidade, essa História resume-se a "um jogo pueril e sangrento de crime e rapina jogado com terrível realismo por crianças depravadas".
Entre o caos e a tirania, entre um ditador e outro, entre um "pronunciamento" militar e uma revolta, a banda lá vai tocando na Alameda de Sulaco. Quando o Senhor Gould, de ascendência inglesa chegada a Costaguana há várias gerações, regressa da Europa, após os estudos, para reactivar a mina de prata de que é herdeiro dispõe-se a procurar investidores. Encontra um exemplar na pessoa do Senhor Holroyd, poderoso financeiro de São Francisco, Califórnia, que "olhava para o seu Deus como uma espécie de sócio maioritário que recebia parte dos lucros através dos donativos que fazia às igrejas" e que faz a Gould este belo discurso (e aqui relembramos que o livro de Conrad foi publicado em 1904): "Aqui neste pais [EUA] sabemos quando devemos ficar em casa. Sabemos quando devemos sentar-nos e ficar à espera. Mas, naturalmente, lá virá o dia em que decidimos avançar.
Não temos outro remédio. Mas também não temos pressa. O próprio tempo estará ao serviço do maior país de todo este mundo de Deus. Seremos nós a dar o mote para tudo: indústria, comércio, leis, jornalismo, arte, política e religião, desde o Cabo Horn até ao Estreito de Smith, e, se for caso disso, até ao Polo Norte, se lá aparecer alguma coisa que valha a pena agarrar.
E, depois, podemos ocupar-nos com toda a calma das ilhas e continentes mais distantes. Quer o mundo queira, quer não, seremos nós os senhores do mundo dos negócios. O mundo não pode evitá-lo, e nós também não, acho eu." O mínimo que se pode dizer é que o século XX não se cansou de dar 'razão' ao Senhor Holroyd.
Já deixámos entrever que "Nostromo" é um romance coral. São várias as personagens memoráveis e concorrentes. Citemos de passagem Giorgio Viola, um velho genovês republicano e revolucionário, ex-companheiro de Garibaldi, exilado pela desilusão política em Costaguana; ou o jovem Don Martin Decoud, "exótico dândi dos 'boulevards' parisienses", regressado a Sulaco para dirigir o jornal da cidade, o "Porvenir", e arvorar-se em ideólogo da secessão da Republica Ocidental. O próprio Gould seria um "idealista", embora frio, que via na riqueza económica gerada pela sua mina de prata um passo em direcção à estabilidade política do país. Um daqueles homens aos quais a "acção", "amiga das ilusões lisonjeiras", leva "consolo". A narração não é linear, enovela-se sobre si mesma, avança e recua, recontando peripécias de pontos de vista diferentes.
Na sua maior parte é feita por um narrador omnisciente e ausente, uma das excepções sendo a carta na qual Decoud relata à irmã, que está em França, os últimas novidades de Sulaco: "Prepara os nossos amigos de Paris para o nascimento de mais uma república sul-americana."
Não podemos resumir todas as tribulações políticas por que passará Costaguana. Contemos apenas que, no meio de uma delas, o prestável Nostromo é chamado para uma missão patriótica: salvar o tesouro da mina, um belo carregamento de prata. Mas o "incorruptível" Nostromo, de quem se diz que era apreciado por homens, mulheres e crianças, o ingénuo homem de mão do Capitão Mitchell ('Nostromo' deriva do paternalismo mal-articulado de Mitchell: "Nostro Uomo", o nosso homem) fez entretanto a sua evolução ideológica, ganhou consciência política, e acabará depositando o tesouro numa "offshore" (Conrad não podia ser mais moderno). Literalmente: Nostromo esconde o tesouro numa ilhota ao largo de Sulaco e diz aos "caballeros" da cidade que a prata se afundou no mar. O magnífico capataz dispõe-se agora a "enriquecer muito devagar".
Como diria Decoud, "tudo isto é vida, tem de ser vida, já que se aproxima tanto do sonho". Nostromo prefere dizer que "só a honestidade não chega para se sobreviver".Romance sobre pequenas tragédias e desilusões individuais na grande farsa da História, "Nostromo" é um livro pessimista (o que não será novidade em Conrad) ou, pelo menos, profundamente céptico. Também pode ser lido como uma alegoria mais geral que toma a "incorruptível" prata como medida indiferente da corrupção moral e mortal dos homens concretos.