Mickey Rourke não é apenas o actor de "O Wrestler". É o seu tema, o seu objecto, a sua razão de ser. Diz-se muitas vezes que todos os filmes acabam por ser uma espécie de "documentário" sobre os seus actores. É verdade, e quanto mais o tempo passa sobre um filme mais essa verdade é evidente (como dizia alguém, o destino da "ficção" é tornar-se "documento"). Ainda assim, é raro encontrar um filme que, como "O Wrestler", leve essa ideia tão a peito. O seu acto essencial é ser testemunha de uma presença, da presença de um actor, da presença deste actor. Sem Rourke - e sem a história de Rourke, que está, por assim dizer, "incrustada" em cada milímetro do seu corpo e do seu rosto - o filme não faria sentido, ou faria um sentido completamente diferente.
Claro que a dissociação continua a ser possível, e não só possível como desejável. É um actor e uma personagem, a sobreposição não é absoluta, e a história de Mickey Rourke não é bem a história do "wrestler" Randy the Ram. Mas há ecos de um no outro, ou não fosse "O Wrestler" um filme sobre glórias passadas e, se não sobre a decadência, sobre uma queda, um confronto com a vulgaridade do mundo.
Randy, como Rourke, foi "grande" nos anos 80, e agora deixou de ser capaz de encontrar um espelho que reflicta essa grandeza - não tão longe assim, e é uma lembrança que nos ocorre a certa altura, da Gloria Swanson do "Sunset Boulevard" de Billy Wilder, esse filme sobre "come backs" e sobre o crepúsculo dos deuses... É o mesmo mundo "encolhido", e dir-se- ia que é nisso que Darren Aronofsky pensa quando trata a relação do enorme corpo de Rourke com certos décors. As cenas no supermercado onde Randy faz uns biscates no intervalo entre dois combates, por exemplo: há ali uma espécie de desproporção, como se Randy fosse o protótipo do "leão enjaulado"...
Um mundo vulgar, mas cheio de dignidade. A principal proeza do olhar de Aronofsky está nessa justeza. Consegue filmar um mundo, ou submundo, tão codificado como os dos "wrestlers" sem tombar no grotesco ou na caricatura. E confrontar-se, por sua vez, com uma vulgaridade corriqueira, com uma urbanidade cinzenta e deprimente, sem nunca as menorizar nem sequer julgar, trazendo-lhes uma luminosidade surpreendentemente tocante.
As cenas com Rourke e a maravilhosa Marisa Tomei, sobretudo as cenas diurnas dos seus encontros no café ou nas lojas, trabalham numa simplicidade despojada de adornos que é sempre uma maneira de fazer justiça às personagens. Numa dessas cenas Randy faz o elogio dos anos 80 através do "rock", aquele "rock FM" não muito sofisticado que ele gosta de ouvir ("depois", diz, "apareceu o Kurt Cobain e estragou tudo"). Noutra cena joga, com um miúdo seu vizinho, um velhíssimo jogo de consola, enquanto o miúdo lhe fala dos jogos novos, de que Randy já ouviu falar mas não tem interesse em experimentar. Pequenas reiterações do carácter "perdido no tempo" da personagem de Rourke.
Aronofsky, em vez de filmar para a "recuperar", oferece-lhe a possibilidade do mergulho total nessa "perdição". Mas no último plano do filme (que é, afinal de contas, um "mergulho") a diferença entre uma maldição e uma bênção torna-se uma questão de perspectiva: Randy está destinado a ganhar-se por aquilo que o perde. E isso é muito bonito.