Morreu o escultor do olhar

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A sua obra mais conhecida está na esplanada do histórico café A Brasileira, em Lisboa: a estátua de Fernando Pessoa, fotografada todos os dias por dezenas de turistas em périplo pela zona nobre do Chiado. A sua marca mais popular, mas não a marca que deixará na história da arte portuguesa, onde ficará como um humanista, um artista de sólida formação clássica mas precursor de um ensino artístico liberto de velhos academismos e centrado na importância do olhar e da individualidade de cada aluno.

António Augusto Lagoa Henriques, escultor e professor conhecido apenas como Lagoa Henriques, morreu no sábado à noite em Lisboa com um melanoma. Tinha 85 anos e um percurso de mais de cinco décadas, desde a conclusão do Curso Superior de Escultura na Escola de Belas-Artes do Porto em 1954, quando se formou com a apresentação de um trabalho de nota máxima - 20 valores.

O funeral realiza-se hoje às 10h30 no Cemitério da Ajuda, saindo do seu atelier em Belém.
"Ensinou-nos a olhar, a ter um olhar inteligente, e isso não tem preço. Foi o meu primeiro mestre, uma figura que faz parte de todo o meu percurso. Já não há muitas pessoas assim, com a sua delicadeza de sentimento e a sua aristocracia de trato", dizia ontem a arquitecta Helena Roseta, aluna de Lagoa Henriques nos anos 1960, primeiro no atelier do artista e, depois, na Escola de Belas-Artes de Lisboa. Aluna não no actual atelier de Belém, mas num anterior, o mais célebre, num dos antigos pavilhões da Exposição do Mundo Português - o pavilhão que ardeu no incêndio de 1972, que destruiu um número indeterminado de obras de artistas portugueses.

Num texto que escreveu a propósito da exposição Aula Extra, em 2006, o crítico e comissário de arte contemporânea Delfim Sardo fala neste incêndio, explicando que no caso de Lagoa Henriques, o artista mais afectado, veio representar um enorme hiato para a compreensão cabal do seu percurso. Assim mesmo, aponta duas obras que considera definidoras: As Varinas, bronze apresentado em 1957 na I Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, e O Segredo, peça já da década de 1970 e actualmente instalada no alto do Parque Eduardo VII, também em Lisboa.

Nas palavras de Sardo, são ambas esculturas "de uma corporalidade assente sobre um equilíbrio compositivo rigoroso", "simultaneamente clássicas e evocativas de um realismo poético", ambas, também, reveladoras da importância do desenho na prática artística de Lagoa Henriques, com "oscilações que tanto se centram sobre a representação da figura como sobre o plano da composição abstracta".

Grande admirador de Pessoa, que dizia ser o seu mestre da realidade interior, e de Cesário Verde, mestre para a realidade exterior e que definia como "o primeiro poeta socialista" em Portugal, Lagoa Henriques chegou à arte através do filósofo Agostinho da Silva, que conheceu em aulas particulares, de preparação para uma candidatura a Letras, e de quem ficaria sempre próximo.

Inscrito no Curso Especial de Escultura da Escola de Belas-Artes de Lisboa em 1945, concluiu o Curso Superior de Escultura em 1954 na Escola de Belas-Artes do Porto, onde se tornaria professor efectivo a partir de 1963, depois de três anos passados em Itália como bolseiro do Instituto de Alta Cultura, entre 1955 e 1958, período que terá sido decisivo para o seu contacto com a arte europeia do pós-guerra.

No Porto, onde foi assistente de Salvador Barata Feyo, ficaria até 1966, quando pediu transferência para Lisboa, acabando por fundar, em 1974, a disciplina de Comunicação Visual, essencialmente dedicada a ensinar a ver. Luísa Arruda, que a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva diz ser "a última grande discípula" de Lagoa Henriques, recorda as aulas como "uma festa" a que "ninguém nunca faltava": "No fundo, ele acabou com o desenho seco, académico, de imitação, ensinando-o de uma forma aberta, humanista, dando aos alunos grande liberdade. Todos tínhamos com ele uma ligação muito forte."

No site do artista na Internet, agora temporariamente suspenso, lê-se uma frase: "O grande problema do nosso tempo é conciliar a técnica com a ética, a estética e a poética." Luísa Arruda diz que a conciliação destas vertentes era uma das preocupações centrais de Lagoa Henriques, e um dos ensinamentos que tentava passar.

O marido de Luísa Arruda, Miguel Arruda, que foi assistente de Lagoa Henriques, fala numa "revolução" para o ensino. "Antes dele o que tínhamos em Portugal era um ensino ligado aos preceitos mais clássicos, o chamado desenho de estatuária, que se ensinava no primeiro e no segundo ano, repetindo o cânone gasto e que não podia existir como referência única. [Lagoa Henriques] criou outros modelos, nomeadamente indo buscar à natureza elementos como troncos, pedras e peças de mecânica, que colocava em pé de igualdade com a estatuária." Mas sublinha também que não se pode falar de Lagoa Henriques sem falar na sua capacidade de comunicação: "Ele comunicava a sua emoção de uma forma extremamente poderosa."

Quando se jubila, nos anos 1980, Lagoa Henriques fá-lo, precisamente, para ter mais tempo não só para trabalhar como escultor mas também para a comunicação, através de uma série de programas televisivos, o Risco Inadiável e o Páre, Escute e Olhe, não tanto programas sobre arte ou desenho mas de divulgação popular em que tentava comunicar formas de observar o mundo e em que falava tanto de pinturas como de grafites como de arquitectura ou da natureza.

Prémio Soares dos Reis e Prémio de Escultura da II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, Lagoa Henriques foi ontem homenageado pelo Presidente da República.

Numa mensagem enviada à família e citada pela agência Lusa, Aníbal Cavaco Silva diz: "Neste momento de luto, é com sentido pesar que presto a minha homenagem a um homem que colocou o seu talento ao serviço da arte e da cultura, merecendo, por isso, o reconhecimento de todos os portugueses."

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