O carro de Heisenberg
O Governo quer impor o chip e quer fazer um uso indiscriminado dele, pois não se trata só do pagamento de portagens
Conta-se uma anedota sobre Werner Heisenberg, o físico alemão que formulou o princípio da incerteza da teoria quântica. Um polícia mandou-o parar por o seu carro se deslocar com excesso de velocidade: - O senhor sabe a que velocidade ia?
- Eu não. Sei onde estou e não se pode saber as duas coisas ao mesmo tempo!
Claro que o princípio da incerteza de Heisenberg se aplica a electrões e a outras partículas subatómicas e não a veículos. É possível saber onde está um automóvel e a que velocidade vai, mas, desde que os limites legais de velocidade sejam respeitados, essa informação não devia interessar a ninguém. O Governo português, com a introdução obrigatória de um chip na matrícula de todos os automóveis, poderá vir a saber onde estamos e, porventura, também a que velocidade vamos. O nosso direito à incerteza pode estar em risco...
De pouco valeram as dúvidas levantadas pelo Presidente da República quando o Governo pediu à Assembleia da República autorização para legislar sobre a utilização de um chip identificativo. E de pouco valeram as reservas levantadas pela Comissão Nacional de Protecção de Dados. O Conselho de Ministros de 5 de Fevereiro passado aprovou uma lei que poderá colocar o país vigiado por um gigantesco Big Brother. Se essa lei entrar em vigor, as autoridades poderão conhecer a localização exacta no espaço e no tempo dos automóveis e, cruzando essa informação com a das bases de dados que têm à sua disposição, poderão diminuir perigosamente a privacidade a que todos temos direito.
Numa sociedade livre, o cidadão deve poder ir onde quiser sem que ninguém tenha nada a ver com isso. Mas agora, em Portugal, se for de carro, terá um chip - bip! bip! - a emitir sinais da sua presença para tudo o que for portagens, polícias e sabe-se lá que mais. Eu, que decidi livremente aderir à Via Verde, sei que, pelo menos para as portagens, parques de estacionamento, bombas de gasolina, etc., a minha presença está a ser registada e espero que haja um uso limitado desses registos. Mas o que o Governo pretende agora fazer tem um potencial de risco bem maior: quer impor um sistema desse tipo a toda a gente (além do mais, cobrando-nos o chip) e quer fazer um uso indiscriminado dele (por exemplo, a nova lei fala não só do pagamento de portagens mas também de "outras taxas rodoviárias e similares", sem especificar quais elas são).
A abstrusa lei levanta dificuldades de vária ordem. O que fazer com os numerosos automobilistas que, como eu, têm Via Verde, que funciona bem? Terão de a deitar fora e comprar o novo chip? O que fazer com os veículos estrangeiros? Serão distribuídos chips na fronteira? E que confiança oferece a nova empresa a quem vai ser dado o exclusivo da gestão do sistema? Num país onde o segredo de justiça é letra morta e onde até já apareceram na redacção de um jornal listas de chamadas telefónicas do procurador-geral da República e do próprio Presidente da República, será que o pior ainda está para vir?
Em países com mais tradição democrática, uma lei deste tipo teria enorme dificuldade em passar. É facto que no Brasil se discute uma iniciativa semelhante, mas, nos países anglo-saxónicos, como a Inglaterra de Orwell, o direito to be left alone é um must. A liberdade individual é aí indiscutível. Os carros são incertos como o de Heisenberg. Aqui o Governo usa a força da sua maioria absoluta para chipar os nossos carros e permanece surdo e mudo perante as vozes de muitos cidadãos, que, na imprensa, na Internet e por outros meios, exercem o seu direito à indignação. Não é um sintoma da saúde da nossa democracia que essas vozes, a avolumar-se dia após dia em petições electrónicas, sejam completamente ignoradas.
A George Orwell, o autor da frase Big Brother is watching you no livro 1984, não terá passado pela cabeça que 1984 acontecesse em 2009, em Portugal. Mas estamos ainda a tempo de evitar que essa ficção se torne realidade. Chipados os carros, o que se chiparia a seguir? Professor universitário (tcarlos@teor.fis.uc.pt)