Sónia Baptista quer ser tudo

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Três mulheres. Quatro, se contarmos com a que existe para lá do palco e do vídeo e que as pensou a partir de uma canção a que chamou "Besoin". Bom, para evitar confusões, talvez seja melhor falarmos em três personagens e uma mulher - Sónia Baptista, bailarina, coreógrafa, cantora, "escriturária de materiais poéticos", figurinista, "uma daquelas pessoas que gostam de objectos porque sim", mas não só. Ela quer ser tudo e "Vice-Royale, Vain Royale. Vile-Royale", a peça que hoje estreia na Culturgest, em Lisboa, é mais uma oportunidade de ser muita coisa ao mesmo tempo, sem esquecer os ingredientes que nos habituámos a reconhecer no seu trabalho, em especial a feminilidade e uma boa dose de auto-ironia.

Talvez por isso olhar para "Vice-Royale, Vain Royale. Vile-Royale" provoque, por vezes, uma sensação de regresso ao passado. É como se o que estamos a ver pela primeira vez fosse uma recordação, ou quase. Sónia explica: "Gosto de reciclar, de voltar ao que fiz antes para aproveitar materiais, atmosferas, mas também para reinterpretar." Há pouco tempo fez "Icebox fly. Winter Kick", em Moscovo, e foi como se redescobrisse este díptico que criou em 2003. "As coisas caem de outra maneira no corpo. É como se todos os tecidos e todos os movimentos se transformassem numa seda leve e confortável, feita para mim."

"Vice-Royale..." começa na escuridão, ao som de uma máquina de escrever, e termina com um filme "noir" (rodado em Super8) em que a bailarina recria uma estenógrafa dos anos 20/30, com uma camisa branca de linhas direitas, calças pretas, sapatos de verniz e uma pala de plástico desenhada por Lacroix para a La Redoute (os detalhes são importantes, e isto é um detalhe). Não é por acaso que a máquina de escrever está lá, momentos antes de Sónia voltar a dançar e a sentir-se feliz por isso.

Três tempos, três modelos

O cenário é minimal. Uma tela, onde são projectados o vídeo e o filme (de Rui Ribeiro), e um microfone de pé alto por onde passam as três personagens que a bailarina descreve como quem dita uma receita: "A primeira transporta-nos para o mundo dos safaris e do colonialismo. É uma espécie de Karen Blixen meio louca, com um pouco de Marguerite Duras. A segunda é uma duquesa visionária, que adivinhou a vinda da Jane Austen e que, ao mesmo tempo, cruza o período barroco com a era pós-punk dos anos 80 britânicos, da atmosfera Bauhaus, dos New Romantics, dos Joy Division. A última é muito kafkiana, parece saída de um filme 'noir'. Tem qualquer coisa de Fernando Pessoa, uma pitada de Katherine Hepburn, um cheirinho a alma dupla. Mesmo para mim, agora que já completámos a obra, é um mistério, esconde-se."

A Inglaterra vitoriana - Jane Austen é uma fixação, diz, admitindo que de dois em dois anos lê "Orgulho e Preconceito" só porque é bem escrito e o tom de crítica social a fascina -, o colonialismo aventureiro, uns tenebrosos anos 20. Três tempos, três atmosferas, três modelos diferentes de mulher, mas com um único desejo, o de contrariar o papel social que lhe está tradicionalmente atribuído na época em que se inspiram e de, alguma maneira, atingir uma forma qualquer de liberdade.

"Gosto que me acusem de ser feminista e de tratar mal as personagens masculinas nas minhas peças (o que nem sempre é verdade, porque desta vez Rogério Nuno Costa, o outro intérprete, tem oportunidade de se vingar). Não me incomoda o rótulo, diverte-me."

Com ou sem rótulo, "Vice-Royale..." pode ser vista como uma peça dividida em três partes ou como um tríptico que é possível apresentar separadamente. Quem optar pela primeira versão encontra muitos pontos de contacto nos adereços que a coreógrafa escolheu para construir estes universos tão diferentes (há sempre uma mesa, um dálmata de loiça, que tão depressa está na Estufa Fria, como nos jardins do Palácio Nacional de Queluz). 

"Os objectos são sempre determinantes no processo de composição", reconhece. Para os vídeos houve "um trabalho louco" para encontrar todos os adereços em feiras, lojas de decoração, chapelarias no Rossio, "sex shops" e, claro, a Internet.

"Quando chego a uma personagem, como aconteceu com estas três, feitas a partir de 'Besoin', imagino logo alguns dos pormenores do figurino", explica. Mas aqui o mais importante foi a canção que sobrou de "Subwoofer", espectáculo que estreou no Festival Alkantara, em 2006, e que Sónia não conseguiu deixar definitivamente para trás.

Tudo partiu desta canção-premonição que a coreógrafa compôs apenas com a sua própria voz e que fala das necessidades de uma mulher: "Une femme à besoin d'un elephant pour conduire ses affaires/Pour choisir ses partenaires et arranger son destin (...)/Une femme à besoin d'un president pour donner aux choses/Une allure parfumé de vanille, de vanité." Premonição porque hoje, quando a canta, não pode deixar de pensar no casal presidencial francês. "Esta canção é [Carla] Bruni e [Nicolas] Sarkozy, toda aquela coisa lânguida da 'chanson française', arrastada, exagerada, improvável..."

A música, que em "Vice Royale..." está em destaque, assume cada vez mais protagonismo no trabalho de Sónia Baptista, que já pensa em compilar as canções que compôs até hoje num disco, para o qual convidaria também uma voz masculina. Criar, a partir daqui, concertos-performance (ainda mais além do que "Subwoofer") não está fora de questão.

"Não tenho formação musical, mas gosto de cantar, como gosto de dançar." E isso nota-se. Talvez tenha oportunidade de o mostrar a Bruni e Sarkozy. É que Sónia Baptista já prometeu, se a peça for a Paris, vai mandar um convite para o Eliseu.

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