António Campos: O homem que fugiu da cidade

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Dizer que António Campos é um cineasta à espera de ser descoberto, dez anos após a sua morte, não deve surpreender num país onde o cinema português está por descobrir (os filmes não foram, e continuam a não ser, vistos - não é isso que explica a relação que o país tem com o seu cinema?). O acesso à obra de Campos tem sido restrito, quando não invisível, na sua vida como depois da sua morte. Houve uma retrospectiva quase integral na Cinemateca Portuguesa em Setembro de 2000, que não escondia a ambição de ser o princípio do descobrimento, e depois nada. A Midas Filmas anunciou a intenção de editar a obra integral do cineasta em DVD há dois anos, mas o projecto continua alegadamente à espera de luz verde da entidade detentora dos direitos dos filmes.

É por isso que o Panorama - 3ª Mostra do Documentário Português, que hoje começa no Cinema São Jorge, em Lisboa, é um pequeno acontecimento. Não é só a oportunidade para uma nova geração que quer fazer filmes descobrir António Campos; é a oportunidade de todos os outros verem um filme dele pela primeira vez.

Campos vai atravessar todo o programa (até dia 22), e não deixa de ser curioso que seja ele a imagem do cartaz - uma fotografia do realizador à sombra de um chapéu de praia, a ler (um projecto para um filme?), e a frase, escrita à mão: "O artista enquanto espera o subsídio". É o indício, numa mostra atenta à produção de documentário mais recente, de que Campos tem alguma coisa a dizer-nos hoje.

Catarina Alves Costa, documentarista, acredita nisso: pela sua forma de trabalhar - o realizador sozinho com a sua câmara, dispondo apenas de meios próprios, "a fazer o que nós agora chamamos 'low-budget'" - ele estava à frente do seu tempo, defende. "Imagino que se tivesse existido vídeo naquela altura, para ele teria sido um paraíso", diz a autora de um retrato-"biopic" de António Campos que abre esta noite o Panorama. "Falamos de António Campos", documentário de 60 minutos, co-produzido pela Midas Filmes e pela RTP2 (faz parte de uma série sobre figuras da cultura portuguesa que serão exibidos no segundo canal), é um filme-iniciação: "Ele é tão desconhecido que isto tinha de ser a base, tinha de cobrir as várias vertentes para quem não sabe nada: quem era, como cresceu, como viveu, que filmes fez... Senti essa responsabilidade."

Marginal e anacrónico

António Campos é um dos grandes desequilíbrios da história do cinema português. De um lado, o grande buraco negro que é o conhecimento da sua obra, do outro, um discurso sobre a mesma que dispensou quase sempre moderação, como se a defesa tivesse de ser convulsiva (ou não era).

De um lado, o vazio, do outro, as grandes palavras: "o nosso maior documentarista", génio de geração espontânea, figura romântica. De tal forma que a ideia sobre o homem precede a sua obra - a experiência de ver os seus filmes é, antes de mais, a confirmação ou o estilhaçar dos "clichés" sobre o realizador.

Por que é que Campos continua à espera de ser descoberto, apesar de, desde os primeiros filmes, ter tido os seus defensores? O realizador e investigador de cinema português no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM) Manuel Mozos refere-se a Campos como "um autor marginal e anacrónico", isto é, alguém que esteve simultaneamente fora do sistema e fora do seu tempo.

Quando Campos aparece, o cinema de que se fala é o Cinema Novo, uma geração cinéfila, "que viu tudo", diz Catarina Alves Costa, que "está dentro de escolas de cinema, de linhas cinematográficas com que se criam identificações - estéticas, mas também ideológicas, políticas". Campos não era como eles. Era um funcionário público natural da província (Leiria) que parecia pouco interessado em cinefilia.

Fernando Lopes que, a par de Paulo Rocha, foi um dos "seguidores" de Campos no grupo do Vává, descreve-o como "muito individualista". Quase como se estivesse a falar de alguém que não queria ajuda. "O seu modo de falar e a sua maneira de vestir davam-lhe o ar de bom selvagem", escreve Paulo Rocha no catálogo editado durante a retrospectiva na Cinemateca. "As pessoas ficavam desarmadas, ele cheirava a campo. Havia um conflito entre ele e a cidade."

"Para todos os efeitos, há aqui uma questão de classe, também", defende Catarina Alves Costa. "Ele não tinha dinheiro, não era um menino rico, urbano..." Por contraponto à geração do Cinema Novo português? "Essa geração fazia também publicidade, fazia filmes institucionais, ganhava dinheiro para depois fazer os seus filmes de autor. Mas o Campos nunca fez isso."

Para José Manuel Costa, professor de documentário, a marginalidade de Campos "a todas as tertúlias e a todos os grupos de pensamento" era não só consequência das suas origens, mas também uma causa, "qualquer coisa que ele procurava". Ele queria estar fora. Para o bem e para o mal, isso criou a imagem de um cineasta ferozmente pessoal, um homem vertical.
"Ele decidiu que ia ser o António Campos de Leiria que ia fazer documentário. Mais ninguém filmou o real português como ele", diz Fernando Lopes. "Todos nós [grupo do Cinema Novo] queríamos fazer ficção. Ele filmou com os seus próprios meios, não tinha subsídios. Já se deu conta? Nesse aspecto, foi o maior de nós todos."

Uma obra esquisita

A marginalidade de Campos reflecte-se nos filmes. Essa desadequação ao seu tempo e o desinteresse pela cinefilia é aquilo que deixa a impressão de que os seus filmes não se parecem com mais nada, é o que pode gerar reacções como: "De onde é que isto vem?" No final dos anos 50, Campos faz duas curtas, "O Senhor" e "Um Tesoiro", visivelmente devedoras do cinema mudo e indiferente a tudo o que o cinema foi depois disso.

Fernando Lopes conta como mostrou "A Invenção do Amor" (1965), por sinal o filme de Campos que estará mais próximo do Cinema Novo, a François Truffaut. "Ele veio a Portugal preparar o 'Peau Douce' e organizei uma sessão com o António Campos. E o Truffaut ficou maravilhado. Mostrei-lhe o primeiro filme do António de Macedo, o meu filme 'As Pedras e o Tempo' e o Truffaut disse: 'Pá, o que eu gosto é do António Campos."

Lopes admitirá depois, falando do entusiasmo com que os realizadores do Cinema Novo acolheram Campos: "Mas isso era o jogo da nova vaga, descobrir os naïves. E o António Campos era um grande naïve. Acreditava que o mundo tinha uma certa ordem, que a natureza tinha uma certa ordem. Isso era o mais fabuloso nele: acreditava no cinema como os primitivos acreditavam no cinema."

Catarina Alves Costa, que prepara uma tese de doutoramento sobre a representação do rural no cinema português, diz: "Há uma espécie de fuga da cidade, uma procura do campo, a ideia de que ali, sim, as pessoas são mais autênticas."

Voltando à descrição do "bom selvagem", feita por Paulo Rocha: o cinema de António Campos também tem sido olhado dessa maneira. "Bom selvagem é o quê? É o que é capaz, sem o conhecimento, de fazer as coisas", diz Catarina Alves Costa. "Essa ideia do António Campos ser um realizador puro e autêntico é um mito. Por isso é que é importante ir aos tempos de juventude dele em Leiria, e perceber o ambiente intelectual de que ele fez parte. Havia uma elite intelectual provinciana, que é também um grupo de amigos que se dedica à tertúlia, ao teatro, aos livros, ao cineclubismo. É nesse ambiente que nasce o cineasta."

Fernando Lopes ajuda a desfazer a ideia do realizador que veio do nada. "Ele viveu numa época particular em que o neo-realismo tinha muita importância - o Alves Redol, o Soeiro Pereira Gomes... São leituras que ele fez. Fizemos todos. Depois, cada um saiu para o seu lado."

José Manuel Costa reconhece no cinema de Campos "uma absorção de um conjunto de referências gerais de clássicos do cinema, do mudo às vanguardas do cinema clássico. Ele apanha isso e isso serve-lhe de alimento para o resto da vida. Se há uma grandeza em Campos é essa ligação a uma referência clássica e não uma permanente ligação ao moderno, como Oliveira [outro cineasta que começou a trabalhar com as referências do cinema primitivo]."Admite que estamos perante "uma obra esquisita, estranha, que as pessoas têm dificuldade em agarrar". Uma obra que é fruto de "uma adaptação às circunstâncias" e, portanto, não pode ser vista sob o prisma da evolução. A prova é "Terra Fria", projecto de ficção que Campos perseguiu desde o princípio e que só conseguiu materializar praticamente no fim. "Se vemos um cineasta como alguém que evolui, temos dificuldade em ver o Campos. Outro dos problemas é que ele está cheio de coisas que parecem fraquezas: a direcção de actores, a forma desabrida como mistura registos. E ele aí vai mais longe do que qualquer um: há mudanças abruptas, desarmantes." Segundo José Manuel Costa, "há um lado rude na construção [dos filmes] que torna difícil uma análise estética mais tradicional."

Catarina Alves Costa: "Ele não tentou fazer bonitinho. Quando vai para Londres, com uma bolsa, escreve uma carta ao Paulo Rocha e diz: 'Cá para nós, esta vinda a Londres foi um pouco frustrante. Porque aqui fazem-se documentários muito bem feitos, muito arranjadinhos...' Não era o que ele queria."

José Manuel Costa sintetiza que ele "é, talvez, o último cineasta da história do cinema português que resta ser descoberto no estrangeiro. Para o bem e para o mal isso vai acabar por ter uma repercussão interna". Onde é que já vimos este filme?

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