O pesado silêncio europeu em Munique
A Europa não pode ignorar o Afeganistão e esperar que a América resolva os problemas da segurança europeia
1.A dada altura, na sua intervenção na conferência de Munique que reúne anualmente a elite da segurança ocidental, Nicolas Sarkozy pronunciou a frase que, no final do encontro, poderia resumir pelo menos uma parte do que lá se passou: "A Europa quer a paz ou quer que a deixem em paz?" Não foi, como poderia supor-se, para responder de forma positiva ao repto conciliador que a delegação da nova Administração americana, desta vez representada ao mais alto nível, lá foi fazer sobre a partilha de responsabilidades pela segurança mundial. Não foi para responder positivamente ao "teste" às relações transatlânticas que dominou os corredores do encontro do primeiro ao último dia: está a Europa preparada para reforçar a sua presença militar no Afeganistão? Está a Europa preparada para investir muito mais na reconstrução política e económica do país? A pergunta retórica do Presidente francês foi para sublinhar a necessidade de uma defesa europeia suficientemente forte para que a Europa possa pesar no mundo. A ideia, em si, está certa, toda a gente a aceita, incluindo a América, e o Presidente francês está em melhor posição do que qualquer dos seus antecessores para defendê-la, na medida em que quer fazer regressar o seu país à estrutura militar da NATO e não se cansa de dizer que a França estará muito melhor no seio da "família ocidental". Sarkozy quis, de resto, encenar a sua presença em Munique, a primeira de um Presidente francês, em torno desse regresso, apresentando-o como a outra face do reforço dos laços militares franco-alemães enquanto núcleo da defesa da Europa. Falou para dentro do seu país, provavelmente mais do que para o outro lado do Atlântico e percebe-se porquê. Enfrenta uma forte oposição interna à reentrada na NATO (inclusive no seu próprio partido e no seu próprio Governo), que tem de vencer rapidamente.
2.O problema é que esta conferência de Munique já tinha um guião previamente estabelecido: colocar um ponto final na era Bush das relações transatlânticas e assinalar um novo começo para a era Obama.Ao contrário do que aconteceu em Davos, no final de Janeiro, a nova Administração decidiu fazer-se representar ao mais alto nível na conferência de Munique, o que só por si constituiu um importante sinal. O vice-presidente Joe Biden foi a estrela do encontro e o seu discurso o prato de substância. Veio anunciar uma nova política externa americana assente no multilateralismo, disposta a consultar os aliados e a levar em conta as suas opiniões e os seus interesses. Prometeu o apoio americano a uma defesa europeia e saudou calorosamente a intenção francesa de regresso à NATO.
Não deixou de dizer com toda a clareza que uma nova relação de confiança e de respeito mútuo entre os dois lados do Atlântico terá de ter como contrapartida uma maior participação europeia na segurança mundial. Mas teve o cuidado de não mencionar especificamente a necessidade de mais tropas europeias para o Afeganistão (embora a presença do general Petraeus e de Richard Holbrooke na sua delegação quisessem dizer muita coisa) e, sobretudo, anunciou os contornos de uma nova estratégia que é muito mais próxima daquela que os europeus têm insistentemente reclamado. A sua chegada a Munique foi, aliás, precedida de vários recados tranquilizadores. Que a nova Administração está muito mais atenta a tudo o que possa evitar desentendimentos públicos com os aliados, que compreende perfeitamente a pressão a que estão sujeitos os governos europeus, que não tenciona apontar o dedo a ninguém. Que terá a paciência necessária para deixar passar as eleições alemãs ou o processo de integração da França na estrutura militar da Aliança, antes de apresentar a factura.
Biden merecia ter ouvido discursos mais positivos dos seus aliados europeus. Se os houve, não foram audíveis. O que ficou foi o "número" de Sarko para consumo interno, a repetição estafada e a várias vozes de que a chave da solução para o problema afegão não é militar mas política e económica e a reafirmação generalizada dos governos dos maiores países europeus (a excepção é a Inglaterra) de que não tencionam mandar mais tropas para Cabul.
O vice-presidente americano trazia dois outros grandes objectivos para Munique: estender a mão à Rússia e ao Irão. Curiosamente, o seu discurso foi ouvido em Moscovo e em Teerão e obteve, como se viu, uma resposta imediata (aliás, positiva), que quer dizer que nas duas capitais já se percebeu que a "música" de Washington será mesmo outra e que terão de encontrar, também eles, outra partitura. O facto ajudou a tornar o silêncio europeu - ou, se se preferir, a incapacidade europeia de encontrar um discurso para a era de Obama - ainda mais atroador.
Ninguém duvida do significado histórico da presença de um batalhão alemão em território francês. Ninguém se esquece que a reconciliação franco-alemã está na génese da unidade europeia e dos 60 anos de paz e de prosperidade que a Europa viveu. Mas isso já não chega para mostrar a Washington e para mostrar ao mundo que a única ambição europeia não é, de modo algum, que a deixem em paz.
A Europa já tinha falhado estrondosamente o teste de Guantánamo. Nada leva a crer que não se prepare para falhar também o teste afegão.
3.O desafio que Obama representa para a Europa não se limita, obviamente, à questão do Afeganistão, embora o futuro da NATO também passe por aí (como já passou, há mais de 10 anos, pelos Balcãs). Pelo contrário, vai também obrigar os europeus, e a curto prazo, a uma clarificação estratégica sobre as suas relações com a Rússia, sobre a questão vital do Irão ou sobre a sua responsabilidade na estabilidade e na segurança da sua vizinhança de Leste - do Cáucaso até à Turquia.
A contrapartida para uma aliança entre iguais que Obama pode vir a propor à Europa passará certamente por uma muito maior responsabilidade europeia em relação à Geórgia, à Ucrânia ou aos "conflitos congelados" nas antigas repúblicas soviéticas que Moscovo poderá ter a tentação de "descongelar" quando isso lhe der jeito (como fez com a Abkházia e a Ossétia do Sul). Em cada um destes dossiers, a Europa tem tido uma de duas atitudes: ou ignorar o problema ou correr a apagar o fogo, como aconteceu em Agosto passado. Não poderá continuar a dizer que não tem nada a ver com o Afeganistão e esperar que seja a América a vir resolver os problemas da segurança europeia. Se quiser que a deixem em paz, uma coisa é certa, a Europa não terá paz. Jornalista