Para que serve um garrano?
Na montanha, trava-se o combate à extinção
de uma raça com uma construção genética de milénios
e que dizem ser a identidade dos pobres portugueses.
Falhou. Na serra da Cabreira, o plano é obrigar cavalos selvagens a descer a montanha, para no dia seguinte cumprir-se o rito da ferra. Os homens estão a postos, mas o nevoeiro adensa-se com o avançar da tarde. No penedo das Buracas espera-se que o tempo limpe. Ao longe, chocalhos. "É o cavalo do malote?!", Ruben descobre-o em qualquer cenário, por mais adverso que se lhe apresente. Empoleirado num rochedo, estica-se, a ver se, por cima das nuvens, traça o plano para as próximas horas. À fogueira aquecem-se os corpos. Contam-se histórias de meninos criados na serra que fazem camas de carqueja para ovelhas, orientam-se por penedos e linhas de água, falam de lobos, víboras fatais, do javali proibido. E de éguas, de um jeito como se fossem mulheres; bonita, nova, jeitosa, altiva. Espera-se e não se desespera. João Paulo e Agostinho justificam o apego à serra com o passado dos pais de guarda-florestais, como se fosse imperativo fazê-lo nos tempos que correm. "Vejam! Vem aí um bando." Vacas? Para Ruben Teixeira, 13 anos, estudante e sapateiro nas férias - e para muitos que batem a serra da Cabreira -, vacas, cavalos, todos têm asas. Em busca de melhores condições meteorológicas, partida rumo ao cume da montanha, Talefe, a 1274 metros de altitude. A visibilidade é mínima, os cavalos parecem esquissos de pintura rupestre, por vezes teatro de sombras chinesas. Assustadiços, fogem. "Sabem que vão ser queimados: não são um bicho qualquer", vaticina Agostinho Carvalho, emigrante em Zurique, 22 anos a trabalhar nas obras públicas, regressado à terra há cinco anos. "Os cavalos sentem, é normal. Há um lugar em que as éguas, as mais velhas, percebem o que lhes vai acontecer. E a partir daí, é mais difícil levá-los para baixo, para a ferra", remata José Maria.
Na sua pick-up, João Paulo Ribeiro, engenheiro, presidente da Associação de Criadores Equinos de Raça Garrana (ACERG) - a única do país responsável pela identificação/registo em livro genealógico de garranos -, desvenda mais serra. Elege-a a mais bela de todas em dias de sol, com vista para multilugares. Conta sobre vidas de famosos da cidade, rendidos àquele pedaço de chão. E os miúdos que o seguem pela serra aumentam a conversa com pormenores mais cor-de-rosa e, a cada deixa, deitam-lhe o olho e ele lá lhes vai dando sinal de aprovação.
Também não faltam histórias mais verdadeiras de cavalos e lobos. Diz quem sabe que o lobo é capaz de estar dias a vigiar manadas, quieto, silencioso. Quando ataca, a égua mais velha passa sinal às outras e, num repente, montam um círculo, patas traseiras para o exterior e os potros ao centro. O garanhão, esse, protector, dá voltas e voltas, garante que cada uma das suas éguas resiste e mantém a posição. O lobo constitui uma grande ameaça aos garranos do país: 1800 éguas e 200 garanhões.
Na Cabreira, está a anoitecer e a humidade gelada impregna-se por todo o lado. João Paulo convence-se a adiar o plano de descida dos garranos. Reúne os homens, aponta para as cinco da manhã do dia seguinte.
"Se o céu existe, é muito parecido com isto. Isto...", Crespim é um deslumbrado por garranos e por esta gente que define como guardiã da paisagem. Engenheiro, a trabalhar na região há mais de 20 anos, confrade dos novos pobres, vive pela segunda vez a descida radical de garranos selvagens, desde o cume da montanha, cerca de sete quilómetros, às vezes por acidentadas serranias. "Isto é uma coisa de outro mundo. Oiça o som." Parece filme do Faroeste, mas sem pó. O alcatrão da estrada potencia o som dos cascos, os animais aproximam-se a galope, desnorteados. "Segue-se a fase mais complicada: se dispersarem aqui, vão parar lá acima outra vez", João Paulo traduz o aumento de tensão.
- Têm de forçar para baixo. Toca a trabalhar! Forçar as éguas!
Entre tantas éguas, hão-de estar as líderes, as mais velhas de cada manada; é convencê-las e a história corre bem à primeira. Os carros já lá estão a barrar a estrada e os homens avançam para os animais de juncos em riste e chicotes improvisados. Encurralam-nos. Que se mantenham os garanhões afastados para não se repetir a cena Ronaldo-Quinzinho.
- Salta! Salta!
- Separa as éguas. São as éguas que tens de separar, seu corno! Eles vão atrás.
- Toma! Toma! Issooooo, Issoo...
- Cuidado com a Preta, 'tá cair! Ajuda!
- Ficou um potro na rede!
"Os machos não gostam que as suas fêmeas se misturem com as dos outros machos. O que é deles, é deles. Também não gostam de ficar com nenhuma que não tenham escolhido. Eles é que sabem quais as éguas que querem no seu bando." José Maria Ribeiro desfaz-se em psicologias equinas e explica que "um macho tem um harém de 25/30 fêmeas".
José Maria é proprietário de 27 fêmeas e quatro machos; um desequilíbrio que não faz sentido na liberdade da serra. Criador de garranos desde miúdo, queixa-se de que um garrano dá pouco dinheiro: "Se tiver um macho, um bom macho, mas que é preto, não dá para marcar: tem de abater. Não se pode tê-lo na serra a cobrir várias éguas, a fazer-lhes filhos. Viu aqueles fidalgos, os de brinco, comprados em Espanha? Não prestam, mas ninguém os pode proibir de andar à solta... Tem de se explicar melhor o apuramento da raça."
A José Maria e aos 660 criadores de garranos selvagens - mais precisamente, semi-selvagem -, o Estado exige vigilância, em troca de um subsídio de 170 euros por animal. Por exemplo, há que vigiar se os garranos têm comida lá nas cotas mais altas da serra, para que não desçam. "Já tive de pagar estragos em culturas de um vizinho. Prenderam-me a égua, tiraram-lhe a identificação e eu?, fiz a minha obrigação. Acha que os matam por darem cabo das culturas?", atenta José Maria.
Afinal, quem matou os garranos? No início do Verão passado, em duas semanas, foram mortos 15 garranos. Sempre do mesmo modo: com disparos de caçadeira. Agricultores foram apontados como suspeitos. Os casos foram alvo de investigação policial.
"Os assassinos, agricultores? Isso é conversa...", desvia-se José Maria. "Isso aconteceu há uns largos anos, quando os animais ainda não eram marcados. Desta vez não, não tem lógica", Belmiro Silva, negociante de garranos, não atinge as suspeitas sobre os agricultores. "Se podem ser pagos pelos danos causados, por que razão hão-de matar os bichos? Não, isto é coisa de gente fraca, gente que julga estar à beira do fim do mundo." O irmão, emigrante nos EUA, confirma a tese e diz-se cortador de carne, introduzindo na conversa o aspecto do consumo: "A de cavalo é boa, mas mais seca, prefiro um bife de vaca." Belmiro aproveita a deixa: "Um potro de quatro meses vendo a talhantes por 50/75 euros, se o animal for para criar, o valor dobra. E se for mais velho, manso, bem montado para corridas de passo travado, o valor triplica." Alisa a camisa turquesa, um toque no chapéu, aponta na direcção dos cavalos. Belmiro avança para o negócio.
Na corte, os garranos parecem tranquilos, alheios à algazarra que assinala o início da ferra, o rito bianual que marca a fogo o corpo do animal. Miúdos treinam poses de toureiro, movimentos certeiros para dominar a besta à entrada da manga, do estreito corredor que a leva ao fogo. Os homens estão alegres; tarefa meia cumprida, o álcool pode espalhar-se pelo sangue à vontade.
O cheiro a gás marca a entrada em cena da primeira mulher: Conceição, a mulher da ferra. Apura-se quais os animais a marcar, qual a sua filiação e dá discussão. Aquecem-se os ferros. Sublinha-se o design dos símbolos que em Espanha já é levado a sério. Faz-se entrar uma égua, segue-se a cria, que se cola à mãe; o esquema é quase sempre este. Os miúdos estão eufóricos, agarram-se à crina e cauda dos animais, gritam palavras de ordem, proferem palavrões como gente grande. E os potros, inevitavelmente: patas torcidas, presas entre as tábuas das mangas, relinchares intensos, que ficam a ecoar. "Mais pau, menos pau, esta forma de maneio não é muito agradável de se ver, mas não é fácil ser de outro modo: são animais semi-selvagens", observa Mário Barbosa, responsável pela Fundação Alter-Real. E desdramatiza: "A marcação a fogo é como se fosse uma picada, o azoto líquido é muito mais doloroso."
Conceição, de ferro em punho, não falha o alvo: o movimento é preciso, nunca vacila. Nesta cena, os homens só entram quando há necessidade de força ou, por vezes, para desparasitar os animais. É Conceição Silva, engenheira da ACERG, que constrói a ponte entre criadores e uma série de teorias e mais fundamentos sobre o melhoramento da raça garrana. É ela que combate no terreno diariamente a extinção da raça. Calcorreia montes, explica os porquês do livro genealógico, apaga discussões sobre dúvidas de paternidade. Convence criadores a valorizarem os seus animais, não os vendendo ao desbarato. Aponta caminhos: passeios equestres, atrelagem de competição, sim, mesmo contra os lusitanos. "O garrano é uma raça em extinção. Se não lhe dermos utilidade, desaparece." Curiosa esta razão de fazer depender o existir da sua utilidade, esta forma de colocar a questão: "O garrano serve para quê? Andar no monte para o lobo comer? Para os da cidade o admirarem, numa rara visita à serra, de jipe ou moto 4? Para subsídios da UE?"
Para matar? Num repente, Conceição: "Estavam numa zona protegida, Corno de Bico, nunca tinham saído dali. Falei com guardas, garantiram-me: os animais não causaram problemas. Para abaterem vários, foi mais do que uma pessoa que o fez. Pois que se aguarde, alguém há-de dar com a língua nos dentes." No campo das suposições, a engenheira avança: "Até acredito que estes senhores, os assassinos, tenham tido algum acidente com um cavalo." E lembra um caso muito falado nas redondezas, um caso que deu em morte: "Era noite, parece que o miúdo vinha da discoteca, não vinha a 50, apanhou um cavalo pela frente e morreu." Dias depois, na serra, três garranos são abatidos. Um deles foi a Saúde, a garrana de Jorge Sampaio, ex-Presidente da República.
Broa, febras de porco, o arroz de legumes sai dos panelões; os homens e os convidados sentam-se, as mulheres, por fim, dão a cara e servem. "Há sardinha assada nesta serra." Em bancos corridos, dezenas de pessoas prestam-se a falar de garranos e coisas de montanha. As mulheres espreguiçam-se no mato, antes do arrumar de mesa, antes que se faça hora de caldo verde.
- Quem dera montar um garrano, ai não!, que não é preciso coragem!
- Só ando de charrete: vou às compras, dar a volta à freguesia.
- Cristina é a única que monta, desde os oito, tinha umas tranças negras; já participou num filme, em livros...
- Concursos: Joãozinho ficava sempre em primeiro lugar na feira da ladra e na anual; era um bicho excepcional, tipo gente. Desde que morreu, perdi a ilusão dos garranos.
- Também a tradição já não é o que era. Havia concursos de tudo, vacas, ovelhas, até galinhas, só para premiar o exemplar mais lindo.
- Tenho uma Barbie, é mesmo garraninha. E uma Custódia e uma Vanda. Há coisa de três anos morreu-nos um garanhão: puseram-no na box para atrelagem, mas com a loucura por uma égua que andava cá fora, prendeu uma pata... Ganhamos-lhes afeição. Não gosto de os ver a levar porrada. Sim, o meu marido diz que, para domesticar um garrano, tem de se lhe bater.
- A marcação é outra coisa que tem de ser. Cheira a carne queimada, não gosto, mas... e se houver um acidente?
- Mataram-me duas. Vingança. Houve um acidente de viação e à conta disso... Assassinos. Nem uma vaca podem ver: matam-na, levam partes e ainda tiram fotografias. Fernando Machado era o criador dos animais que pastavam com Saúde, a garrana do Presidente. Os anos passam, os massacres continuam a acontecer pontualmente, e ele insiste que os culpados são sempre os mesmos: homens maus, carcomidos pela inveja de um trabalho, "um modo de ser garrano".
Ser garrano é "ser senhor da montanha. É ser resistente há séculos. É fazer do pouco muito", define o sociólogo Adelino Gouveia. Reformado, com tempo para se perder nos mistérios da montanha, o sociólogo não compreende - irrita-o - questões como: estará o povo preparado para a mudança? Para novas ou outras utilidades do garrano? "Não está preparado? Mantêm há tantos séculos um património nosso, europeu, sem o mínimo de custo para o Estado e ainda se pergunta se está preparado? O Estado deve é premiar este povo e mantê-lo na montanha a fazer o que gosta, em vez de tê-lo no desemprego nos grandes centros urbanos."
Albino Carneiro, presidente da Câmara Municipal de Vieira do Minho, abraça a causa dos garranos como um caminho de futuro. Desfia a dificuldade em encontrar respostas para a serra da Cabreira, em gerir uma série de interesses públicos e privados, num território que diz marcado por uma atitude individualista. "Estamos no Norte, estamos no Minho." Mas ao autarca, que foi pastor até à adolescência, não faltam projectos orientados para o turismo que elegem o garrano como potenciador. Por exemplo, o reaproveitamento das antigas casas dos guardas florestais, espalhadas pela serra, desocupadas desde o 25 de Abril.
"Civilizar potros e criar-lhes um mercado", a exemplo do concretizado com outras raças, é para Mário Barbosa uma resposta à questão que, ao longo das conversas com os mais diversos técnicos, vem sempre à baila: para que serve um garrano? Responsável pela Fundação Alter-Real e dirigente da Coudelaria Nacional, em Santarém, durante anos, acredita que o futuro do garrano passa pelas mãos das crianças nos centros hípicos. Em Portugal, relata, existem cerca de 400 centros hípicos: há mercado, portanto, para o garrano.
Há que criar utilidade para o garrano, alertam os entendidos, atentando ainda mais para o facto de os subsídios da UE estarem só assegurados até 2013. E os subsídios (170 euros por animal) é a razão de ser da maioria dos criadores.
Para José Leite, veterinário, secretário técnico do Livro Genealógico da Raça Equina Garrana - um cargo que visa o melhoramento da raça -, um garrano é tão património como é o Mosteiro dos Jerónimos. Com uma diferença abismal: apresenta uma construção genética de milénios, capaz de contar a nossa História desde o Paleolítico. Uma construção que está a ser estudada por especialistas da Universidade do Porto. "São técnicas do mais alto nível que através do ADN mitocondrial permitem saber quais e quantas linhas-mães existem", avança José Leite, responsável por um trabalho que, em 15 anos, conseguiu multiplicar por dez o número de garranos puros. O garrano tem uma construção genética estupenda, mas com um problema: "Essa construção é a identidade dos pobres. Ninguém gosta dela."
E a identidade dos pobres não se apagará se vingarem as novas utilidades para o garrano? Pelo contrário, defende o técnico, "precisam-se novos utilizadores para que o cavalo não desapareça e continue a ser a identidade do pobre. A base genética, a base de criação estão aqui: os melhores cavalos saem da Cabreira e do Gerês; os grandes ganhadores em atrelagem, em beleza... sim, havia até um concurso de beleza em andamento, acabei com isso, dava sempre em porrada".
Para o homem que está na génese de vários livros genealógicos de raças autóctones, o futuro do garrano terá sempre de estar nas mãos dos pobres. Isto para que não se perca a identidade do país. a
Resistiram ao longo dos séculos em cotas de altitude acima dos 700 metros, mas não eram mais do que 200 quando, na década de 1980, José Leite reuniu técnicos e propôs ao Estado concretizar um padrão da raça. "O garrano estava perdido. Quis-se cavalos maiores, mais bem construídos, com melhor silhueta..."
José Leite, que conquistou raparigas na garupa de uma égua, que afirma ter formado a sua identidade com garranos - e também com vacas barrosãs -, recusava-se a ver a raça desaparecer. Os ciganos eram praticamente os únicos a valorizar o garrano, devido à sua resistência. "Come pouco, é sóbrio, percorre 50 km por dia sem se cansar porque o ponto de gravidade não sobe nem desce e o cavaleiro vai como que embalado, evitando o traumatismo do trote e do galope." Essa estranha forma de se mover - andadura - foi reconhecida há muito pelos romanos, que a exploraram em campanhas bélicas, muitas vezes para ultrapassar o inimigo. Por causa de uma dessas ultrapassagens, o general francês Junot perdeu vários dos seus capitães na Ponte de Mizarela, ficando a vitória do lado dos portugueses.
Afonso Henriques montava um garrano. Nos Descobrimentos, o garrano partiu nas caravelas. Nas duas grandes guerras, o garrano aparece no Exército português, não como cavalo de sela, mas de tiro ligeiro: puxa canhões, carrega víveres, água, armas. Muito antes de tudo isto, em Foz Côa, os antepassados expressaram o seu reconhecimento através de representação rupestre.
José Leite e um punhado de técnicos especialistas em raças autóctones percorreram a História, consultaram dicionários, uma pesquisa intensa para concretizar o padrão da raça. O mais complicado, recorda, foi definir o garrote do garrano: 1,35m, ficou assente. Outras características, como a cor - o castanho -, foram-se apurando com os anos. Cavalo que não apresente as características determinadas, não entra no livro genealógico, não é marcado a fogo com o G de garrano. A.S.