O juramento de Hipócrates perante a morte assistida
A mais antiga tradição médica quanto à morte assistida não se encontra consubstanciada no texto fundador
Apenas um dos pontos do antigo Juramento de Hipócrates costuma ser salientado: "Nem darei um medicamento letal a alguém se me for pedido, nem farei uma sugestão para esse efeito. De modo semelhante, não darei a uma mulher uma substância abortiva" (citado in Paul Carrick, 1995: 69).O que se pensa hoje deste Juramento é que se trata de um código médico esotérico e ético com influências filosóficas pitagóricas, embora não exclusivas (ibid.: 88). Segundo os pitagóricos, a obediência a Deus era o maior dever moral, devendo a existência servir para os humanos expiarem as suas faltas. Por isso, não deveriam cometer suicídio, o que equivaleria a interromper a expiação, e deveriam deixar descendência para que a divindade continuasse a ser louvada, o que os levava à proibição do aborto.
Quanto à questão da ajuda no suicídio, Paul Carrick está convencido de que "não há qualquer prova de que, sob as leis das cidades-estado gregas, fosse ilegal um médico fornecer a droga adequada a quem se quisesse suicidar" (ibid.: 84). Estritamente proibido seria, isso sim, usar a sua arte para envenenar alguém.
Para Carrick "o médico grego típico" podia mesmo nunca ter ouvido falar em tal Juramento. Aliás, o mesmo aconteceria com o médico romano. O Juramento apenas passa a ter grande importância a partir do momento em que os valores cristãos se tornam dominantes, nos últimos 150 anos do Império Romano. Porquê? Porque era o código médico que mais se adequava ao cristianismo, sobretudo no que toca ao aborto e ao suicídio, mesmo "racional", e porque o cristianismo acabou por se converter em religião oficial do/s estado/s. Saliente-se, aliás, que algumas escolas filosóficas gregas faziam mesmo a defesa do suicídio em certas circunstâncias, no que eram acompanhadas por médicos da altura. Mas este pluralismo filosófico acaba com a chegada de uma concepção autoritária do cristianismo em que, como escreve Paul Ricoeur, a religião pede a sanção do estado e o estado a unção da religião, não se percebendo hoje que pode haver hermenêuticas distintas para um mesmo valor partilhado, que é o da inviolabilidade da vida humana (cf. Dworkin, 1993).
Feita esta contextualização do conhecido Juramento, penso ser de concluir que, atendendo ao facto de não vivermos já sob um regime confessional, é tempo de reconhecermos devidamente o pluralismo ético em que estamos envolvidos, em que não há uma única perspectiva do que é, ou pode ser, uma vida (moralmente) boa. Por outro lado, não deixa de ser estranho que alguma classe médica queira resolver o problema da legitimidade ética da morte assistida recorrendo à hermenêutica de um texto - ou à sua interpretação mais linear -, ainda por cima desenquadrada de qualquer contextualização cultural. Além do mais, se a tradição, de per si, fosse fonte de legitimidade ética, creio que se deveria dizer que a mais funda tradição ética neste âmbito médico-filosófico é a do pluralismo: antes de qualquer Juramento de Hipócrates, era essa a tradição filosófica e médica grega e romana. Por outras palavras: a mais antiga tradição médica quanto à morte assistida não se encontra consubstanciada no Juramento de Hipócrates, mas está antes espelhada no pluralismo médico-filosófico em que este código deontológico surgiu. Docente de Filosofia da Educação da Universidade do Minho (laura.laura@mail.telepac.pt)