"Valquíria" é muito provavelmente omelhor filme de Bryan Singer.Realizador conhecido pelas suasincursões em universos de superheróis(os "X-Men", o "Superman")ou habitados, na mesma ordem demaniqueísmo, por criaturas a elesaparentadas (como o Keyser Soze de"Os Suspeitos do Costume", o seuprimeiro e mais célebre filme).
Uma das coisas curiosas de "Valquíria" éconstatar que, se Singer até já tinhafilmado um eco directo do nazismo(em "The Apt Pupil", baseado numahistória de Stephen King), estemergulho no nazismo propriamentedito não deixa de convocaratmosferas e ambientes aproximáveisaos desses filmes.
Há qualquer coisados "X-Men" nas cenas das reuniõesdas cúpulas da resistência antihitleriana(onde pontifica a opacamajestade de Terence Stamp, queSinger tinha querido trazer para os"X-Men" depois de o ter visto comovilão no... "Superman 2"), mastambém o há nas reuniões do estadomaior(e na própriainexpugnabilidade) de Hitler.
Adimensão palaciana da conspiraçãode Julho de 44 (a mais importantetentativa para matar Hitler eorganizar um golpe de estado), que ofilme reconstitui, é dada como umconfronto de "titãs", e protagonizadapor um homem (o CoronelStauffenberg, interpretado por TomCruise) cujas características físicasfavorecem um tratamento quelembra o dos super-heróis clássicos,aqueles que adquirem poderesespeciais na sequência de umdesastre que lhes deixa o corpomarcado.
A Stauffenberg falta umamão e um olho, em resultado de umferimento de guerra, e é como seSinger usasse essa imperfeição física(por exemplo nas várias cenas com oolho de vidro, que Cruiseconstantemente tira e põe) parasublinhar o que nesta personagemestá já para além de umahumanidade em sentido comum. E,também, no mais impressionanteplano de todo o filme (um "heilHitler" de Stauffenberg com o cotono lugar da mão estendida), paradestruir a própria "iconografia" naziatravés da caricatura da suamonstruosidade.
Ambíguo, certamente."Valquíria"não é "o filme do costume" sobre onazismo ou sobre o anti-nazismo.Fora sabermos que Stauffenberg e osseus camaradas estão do lado certoda História, nada há dereconfortante nem neles nem nassuas motivações - o que é até, pelomenos até certo ponto,historicamente justo. Stauffenberg,assim como boa parte do corpo deoficiais do exército alemão, eraoriundo da velha aristocracia militarprussiana, que não tinha especialsimpatia pelo nazismo mas podiaconviver bem com ele enquanto osinteresses se mantivessem comuns ea classe não se sentisseparticularmente desonrada.
Aperspectiva da derrota total daAlemanha (o único tipo de derrotaque o fanatismo hitleriano podiaaceitar) não fazia parte dessesinteresses, e as atrocidades naziseram intoleráveis, não por simesmas mas pela "desonra" quelançavam sobre o civilizado prestígioda Alemanha. E resumidamente écom estes argumentos queStauffenberg, na cena preambularde "Valquíria", explica a suaresolução de combater Hitler.
Umcombate que se joga, portanto, paraalém de um humanismo canónico:serão máquinas contra máquinas,máquinas organizativas mastambém homens dotados de umafrieza maquinal, como se nãohouvesse hipótese de ser de outramaneira. Singer adensa estadesolação humana na cena (a únicaem que se houve Wagner) com osfilhos de Stauffenberg, quemacaqueiam saudações e palavrasde ordem nazis, eles também jápequenas máquinas condicionadaspor uma educação para o nazismo.
A partir daqui, "Valquíria" constróiuma reconstituição da conspiraçãode Julho totalmente servida em friezae determinação, desprovida de palhasentimental (mesmo as cenas com amulher de Stauffenberg servemapenas para sublinhar a sua frieza e asua determinação), um confrontoquase "conceptual", vivido emabstracção da humanidade dosprotagonistas. E nesse passo, será asua maior proeza, reencontra algumada severidade dos filmes anti-nazisque Fritz Lang fez durante a II Guerra("Os Carrascos Também Morrem","Feras Humanas"), onde a reacção aonazismo podia nascer de uma repulsamoral mas o combate tinha que serfeito numa suspensão dessa moral -utilizando os códigos e os processosdo inimigo, combatendo adesumanidade com a desumanidade.
Stauffenberg, pelo menos oStauffenberg de Bryan Singer, parececonsciente disso. Só que a"conspiração de Julho" não foi umfilme de Fritz Lang, nem foi um filmede super-heróis; o que é interessanteé que Singer, obviamente tambémconsciente disso, a tente filmar comose sim, tivesse sido.