A percussão que dança

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"Muitas pessoas dizem que eu danço." Não é uma bailarina que diz isto - é Elizabeth Davis, 49 anos, percussionista. O que ela faz é tocar instrumentos de percussão. A música é que dança com ela: "É uma coisa que vem mesmo dentro de mim. Vem da alma, eu gosto mesmo de tocar, de interpretar música, os gestos são a minha própria expressão", explica ela em português com um inconfundível sotaque inglês.

Estamos no Centro Cultural de Belém, em Lisboa: é lá que ela vai tocar amanhã (sábado, às 21h, com a Orquestra Sinfónica Portuguesa sob a direcção da maestrina Julia Jones) o concerto para percussão de André Jolivet, obra virtuosística escrita pelo compositor francês em 1958. "Não há gravações", garante Elizabeth Davis. E de facto não é fácil encontrar: "Há de todos os outros concertos dele, mas o de percussão não existe." A coordenadora do naipe de percussões da Orquestra Sinfónica Portuguesa (OSP), solista virtuosa, entusiasta da música contemporânea e da ligação entre as diferentes artes, explica-nos o que tem de especial o concerto de Jolivet: "O Jolivet escreve muito bem para percussão. É uma obra jazzística, tem harmonias muito interessantes, mas também uma grande simplicidade", diz Elizabeth. Ela coloca o concerto que vai tocar na linha das grandes rupturas estéticas de outro compositor, Edgar Varèse, professor e amigo de Jolivet. Mas convida pais e filhos para virem a este concerto, porque "é uma obra muito acessível, para todas as idades."

Muitas músicas diferentes

Elizabeth Davis é coordenadora do naipe de percussão da OSP desde 1993. "Traz a sua responsabilidade", diz. "Não é só tocar as peças, tem de se ver tudo com antecedência, quantas pessoas são necessárias e quem se adapta melhor a cada parte, ver o 'set up', falar com os técnicos de palco para ver o espaço...", explica a percussionista. "E nalguns casos dá um trabalho enorme, como na ópera 'Das Märchen' de Emmnauel Nunes...", confessa.

Mas que ideia foi essa de vir para Portugal, vai para 20 anos? "Vim para Portugal no fim de 1989 tocar na Orquestra Régie do Porto, convidada pelo Ministério da Cultura. Fiquei no lugar de timpanista, e era minha tarefa ensinar e melhorar as futuras gerações de percussionistas portugueses", conta.

Em 1993 concorreu à recém-criada OSP: "Fui aceite e fiquei como chefe de naipe." E assim assentou em Portugal. Mas já tinha um percurso bem viajado: formou-se em Inglaterra, na Nottingham University. Foi depois bolseira para a escola superior de música de Hamburgo. "Fui a primeira mulher percussionista na escola!", diz a intérprete, com uma pontinha de orgulho. Depois foi a tarimba de nove anos em Londres como "free-lance". Nesse período da sua vida, fez de tudo: "Nesses nove anos trabalhei em muitos campos de actividade e tipos de música diferentes, fiz música orquestral, música ligeira, solos, jazz, música de câmara, música contemporânea. Trabalhei com o Koenig ensemble, a London Sinfonietta, o grupo Lontano, a BBC Symphony Orchestra ou a Chamber Orchestra of Europe. Mais tarde, toquei em Darmstadt." Viajou, ganhou prémios, deu recitais, fez "workshops", encomendou obras a compositores, tocou em Inglaterra, França, Itália e até na Austrália.

A percussão tem todas as cores

As experiências com o teatro, como a colaboração com a Royal Shakespeare Company, "exigiam improvisação", conta-nos Davis, e essa experiência é-lhe útil ainda hoje, por exemplo quando subiu ao palco da Culturgest para a ópera de António Pinho Vargas e José Vieira Mendes, "Outro Fim". Ali estava ela, num ensemble em cima do palco da Culturgest, a ver-se subitamente como percussionista-actriz. A ópera, o espectáculo em que as artes se encontram, é uma paixão sua. Tem a sorte de poder experimentá-la regularmente no Teatro de São Carlos, onde se abriga a OSP.

"Gosto muito de tocar ópera. Sempre gostei da colaboração com vários lados do espectáculo", diz Elizabeth Davis. E esse gosto é capaz de vir de longe. Elizabeth conta-nos como tudo começou: "Fui criada com música em casa. Os meus pais estavam ligados à música e os meus avós também. A minha mãe não tocava, mas era professora de dança e coreógrafa."

É daí que vem a percussão que, nas suas mãos, dança? Não é bem assim. Ela começou por tocar piano, aos cinco, seis anos. Depois aprendeu piano "a sério", a partir dos nove anos. A percussão vem da sua avó: "A minha avó tocava bateria num grupo de jazz. Eu já gostava de percussão, e se calhar já estava dentro de mim", diz. Aos 15 anos começou finalmente a tocar percussão. Já estava dentro dela, certamente. O que tinha para Elizabeth aquele instrumento que os outros não tinham? "A percussão é capaz de uma escala de dinâmicas muito grande e uma paleta de sons que depende do tipo de articulação e ataque que uma pessoa usa em cada um dos instrumentos. A percussão tem todas as cores", explica.

Qualidades contemporâneas

Entre toda a imensa actividade musical de Elizabeth Davis, destaca-se a sua dedicação à música contemporânea. O compositor português Luís Tinoco é um dos criadores que Elizabeth mais admira e que mais tem tocado. Ele, por seu lado, afirma ter tido "a sorte e o privilégio de colaborar com a Elizabeth". Davis tocou peças suas a solo ou em duo, com a flautista Katharine Rawdon (no duo Machina Mundi), para além das obras feitas no âmbito da Orchestrutopica (de que Elizabeth também faz parte e onde criou também um grupo especificamente de percussão, o Lisbon Drummatic) e de repertório orquestral com a Sinfónica Portuguesa. Elizabeth Davis, entusiasmada com um novo instrumento que adquiriu na Indonésia - o "bonang", um conjunto de 14 peças com curiosas afinações -, pediu a Luís Tinoco que compusesse uma obra a pensar nele. E assim foi. "A percussão é um leque de instrumentos quase ilimitado, cada país tem os seus instrumentos e cada compositor tem de inventar novas coisas, procurar novas ideias e novas cores, explorar este mundo exótico", diz Davis.

A percussão terá sempre para ela esse lado de criatividade e agilidade. Elizabeth conta como foi uma vez a um ferro-velho procurar tambores de travões porque um compositor inglês, Michael Fennessy, queria uma oitava e meia cromática de tambores de automóvel.

Luís Tinoco elogia as muitas outras qualidades da intérprete: "A sua entrega e interesse genuíno pela criação e divulgação de novas obras, o rigor técnico, a sensibilidade e musicalidade das suas interpretações, o seu profissionalismo e perfeccionismo, procurando sempre ser fiel à partitura e à ideia do compositor." Tinoco, que gosta de a ouvir tocar tanto obras suas como a de outros compositores, faz questão de acrescentar ainda que "a Elizabeth é também uma pessoa fantástica, com qualidades humanas admiráveis".

O louvor é partilhado por António Pinho Vargas, que a percussionista diz ser um dos seus compositores favoritos. Ela tocou muitas obras suas, entre as quais "Acting Out" (feita para ela e para o pianista Miguel Henriques), as óperas "Édipo", "Os Dias Levantados" e "Outro fim". Para Pinho Vargas, "Elizabeth Davis é uma música extraordinária, fora do comum". "Há pessoas que só por si podem transportar um grupo de músicos para outro patamar, pela sua presença e com o seu exemplo" - Elizabeth Davis é, para ele, uma dessas pessoas. Para Pinho Vargas, "para além das qualidades técnicas e musicais, há um lado de 'performer' muito visível nela. Vê-la tocar é um espectáculo dentro do espectáculo", diz o compositor, que não esconde a grande cumplicidade musical com a intérprete.

Elizabeth Davis é esta "performer" da percussão, que procura incessantemente renovar e sentir, com todo o corpo. Mas nem tem de pensar que dança com as baquetas. Para ela é uma questão de instinto.

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