Esse espectro chamado plágio
Terá a nova ecologia comunicacional do século XXI abolido a regra contra a apropriação do trabalho intelectual alheio?
Aqueixa vem hoje de um jornalista, Hugo Gonçalves (H.G.), acerca de uma colaboração que fez para a edição de Janeiro do Lux Frágil, mensário gratuito editado por uma discoteca de Lisboa:"No dia 27 de Novembro enviei um texto por e-mail, com o título O Elogio da Crise, ao editor do jornal do Lux, Pedro Fradique. O editor resolveu mostrá-lo a alguns amigos e colegas de profissão - entre eles estava o jornalista do PÚBLICO Vítor Belanciano [V.B.]. (...) Queria, segundo me disse, partilhar o artigo e saber as opiniões dos seus colaboradores e amigos sobre o mesmo. No dia 13 de Dezembro, uma crónica na pág. 3 do P2, escrita por V.B. ['Larguem o ecrã'], começava assim:
'Somos a geração pós-revolução. Não estamos no top de preferências dos que lutaram pela liberdade. Não temos ideais, dizem-nos. Somos os doutores que queriam que fôssemos, replicamos. Deram-nos TV a cores e jogos de computador. Nunca estamos sozinhos. Ele é telemóveis, SMS ou Skype. (...) Somos guardiões do lema pensar global, agir local'.
Um dos parágrafos do meu texto: 'Nós, os que nascemos depois do 25 de Abril, nunca tivemos uma causa geracional, metemos nojo aos colunistas que lutaram pela liberdade, somos os doutores e engenheiros que queriam que fôssemos. (...) Nós, os filhos da pós-revolução, crescemos com televisões a cores, com jogos de computador, com os vídeoclips da MTV a açucarar-nos a vida. Nunca estamos sozinhos - os telemóveis, as SMS, o Messenger, o Facebook. Recebemos o conforto que faltou aos nossos pais. (...) Queremos ser intérpretes do aforismo moderno: pensa globalmente, actua localmente.'
(...) Sim, somos vulneráveis às palavras e às ideias que absorvemos e digerimos e processamos. Porém, e ainda que os textos abordem claramente temas distintos, no caso do parágrafo em questão não se trata de vulnerabilidade, mas de cópia: a cadência, a ordem das palavras, a ideia subjacente e até as imagens usadas para ilustrar tal ideia. Não esquecendo que V.B. recebeu o meu texto (...) dias antes de publicar a sua crónica".
H.G. esclarece que, duas semanas antes de escrever ao provedor, reclamara junto do director do PÚBLICO acerca deste alegado plágio de um escrito seu, mas sem qualquer reacção. E conclui:
"O meu texto foi publicado após a crónica de V.B. No entanto, tenho testemunhas e e-mails que provam que o meu artigo foi escrito muito antes do texto do PÚBLICO. Não gostaria que os leitores pensassem que fiz um exercício de copy/paste [copiar/colar no computador]. É desagradável. Lamento que o PÚBLICO não se tenha preocupado em esclarecer este problema".
O provedor solicitou esclarecimentos a V.B., perguntando-lhe preliminarmente se confirmava a leitura prévia do texto de H.G., o que assumiu:
"Nunca fugi - nem ninguém deste jornal - a esta questão. Claro que li o texto de H.G. Mais: instiguei à sua publicação a quem me pediu opinião. Por isso, recuso insinuações que poderia passar-me pela cabeça dizer que não li o referido texto".
O provedor nada insinuou a esse respeito, apenas perguntou, no exercício normal de funções, pelo que desconhece a quem V.B. possa referir-se. Quanto à explicação da similitude entre o seu texto e o outro, V.B. adianta:
"A ideia, o conceito, a essência, dos dois textos é totalmente diferente. O meu reflecte sobre a retórica tecnológica, como se fosse a única imagem de um futuro possível. Algumas influências na sua feitura foram teorias de Zygmunt Bauman (a geração do 'ter' e não do 'ser'), análises de James Howard Kundler (a confiança cega na tecnologia e o estilo de vida ocidental ter que mudar face à escassez de recursos energéticos) e texto de Simon Jenkins sobre haver cada vez mais pessoas a consumirem espectáculos ao vivo, porque não há comunidades virtuais que os substituam. O texto de H.G. é sobre o estado de Portugal e como a crise pode ser, afinal, a salvação.
A minha crónica está escrita num registo formal, que é o meu: conciso, directo, frases curtas, dinâmico, cadenciado.
Isso não significa que não existam cinco frases no princípio da minha crónica com semelhanças a frases do outro texto, que, em alguns casos, na sua declaração, H.G. tira de contexto, recorrendo a parêntesis. Adiante. Não vou estar a discutir 'vírgulas', que é o que, nestes casos, pode suceder.
Digo, frontalmente, que sim, é plausível que a leitura, alguns dias antes, do texto de H.G. possa ter sugestionado essas minhas frases. Fui um pouco incauto? Talvez."
E depois, à guisa de doutrina para um gesto que olha com aparente displicência, V.B. elabora uma tese justificativa:
"De qualquer forma, a ideia que atribui forma a essas frases está banalizada e é do senso comum. (...)
Eu próprio, em crónicas anteriores, utilizei alusões parecidas para reflectir o mesmo: 'Podemos recorrer a astúcias e pequenos gestos quando estamos entre desconhecidos sinalizando a intenção de permanecermos afastados, como a utilização indiscriminada do telemóvel - como se através dele obtivéssemos consolo de estar em comunicação, sem o desconforto que o verdadeiro contacto reserva'. (Viver por opção no gueto, 13-08-07); 'Fazer parte de comunidades ou universos virtuais como o Second Life, de dia, ou passear no Chiado de iPhone no ouvido, à noite. Cada um pode criar o seu mundo artificial'. (Coexistir, 20-07-08).
Sei perfeitamente que existem sensibilidades diferentes para conviver com estas questões. Entendo a susceptibilidade de H.G. Muitos outros partilham do mesmo, certamente. Respeito-o. (...) Essa não é a minha visão, no entanto. (...) Enquanto alguém que pensa sobre estes factos, queria deixar apenas a seguinte observação:
Nenhum texto, ou obra, é puramente original, feito exclusivamente por um sujeito, livre das interferências de outras produções. Citações, referências, alusões, apropriações e ecos - conscientes ou inconscientes - encontram-se, cada vez mais, num mundo intrincado de signos. Mais do que isso, são a própria condição do acto criativo. Ter uma voz singular implica adoptar e abraçar filiações, comunidades, discursos. Inventar não é criar do nada, mas do caos.
Todos o sabem, poucos o aceitam. Tenho a sensação de que hoje grassa uma espécie de arrogância cultural, e uma hipocrisia que lhe está subjacente, quando se fala nestes assuntos. Com o fluxo ininterrupto de informação vinda de todos os lados, estas questões são - e serão ainda mais no futuro - relevantes, implicando rever as formas pelas quais nos relacionamos com elas".
Por louvável que seja a franqueza de V.B. ao admitir influências do texto de H.G., é muito mais problemático que o encare como natural. V.B. constatava na crónica em causa haver quem acusasse a sua geração (de que se assume como porta-voz) de já não ter ideais. O provedor, que não sabe se é isso que ele próprio pensa, entende de forma diferente - que continua a haver ideais, mas não necessariamente coincidentes com os das gerações anteriores. Em todo o caso, estava convencido de que a não apropriação do trabalho intelectual alheio, mais conhecida como recusa do plágio, permanecia como ideal transmitido de geração para geração.
Conviria a V.B. ter a consciência de que o código deontológico da sua profissão estipula que "o jornalista deve combater (...) o plágio como grave falta profissional" e de que trabalha para um jornal cujo Livro de Estilo é taxativo a este respeito: "O plágio é terminantemente proibido no PÚBLICO".
Poder-se-ia pensar que a proximidade de ideias, a semelhança da exposição e a coincidência de vocábulos entre H.G. e V.B. não teriam passado de uma bizarra coincidência em milhões de diferentes combinações lexicais à volta do mesmo tema - certamente mais rara do que ganhar o Euromilhões. Mas, tendo lido o outro texto antes de escrever o seu, a V.B. não poderá ter escapado tudo isso, pelo que lhe competiria fugir à inevitável comparação entre dois discursos tão concordantes.
Sendo certo que a nova ecologia comunicacional poderá obrigar a repensar o conceito de direito de autor, como alega em sua defesa, V.B. estava a escrever, com a sua própria assinatura, para um órgão de informação tradicional, onde ainda imperam (e imperarão) os velhos valores que obrigam a atribuir devidamente às respectivas fontes todas as informações e expressões recolhidas algures.
Remata o jornalista:
"Alguém me perguntava: 'E se fosse ao contrário?' Respondi - com exagero, decerto - que todas as semanas vejo isso acontecer com textos meus. (...) Todos são bem-vindos às minhas considerações e histórias. No limite, elas nunca foram apenas minhas, em primeiro lugar, façam favor de fazer delas o que quiserem".
Sendo estimável, a generosidade de V.B. não o autoriza a abusar da generosidade dos outros.
a Caso evidente de plágio é o dos vários leitores que enviaram ao provedor a mesma mensagem reclamando contra a reportagem que, na pág. 1 do PÚBLICO da passada quinta-feira, possuía uma chamada em fotolegenda com o título "Há católicas felizes com maridos muçulmanos". Outros dirão tratar-se de campanha ou de abaixo-assinado não assumido, mas ao provedor pouco importa, tanto mais que julga haver pertinência no protesto. A reportagem, desenvolvida nas págs. 2 a 4 dessa edição, destinava-se a fazer contraponto às polémicas declarações do patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, dois dias antes, quando resolveu fugir ao politicamente correcto e alertar as mulheres do seu país: "Pensem duas vezes em casar com um muçulmano (...). É meter-se num monte de sarilhos".
O provedor sintetiza o sentido das reclamações a partir do texto de um leitor que não fez copy/paste, Gabriel Silva: "Dos quatro exemplos (...) com que o jornal queria ilustrar as ditas 'católicas felizes com maridos muçulmanos', constata-se que: uma, não sendo casada, 'não é praticamente de nenhuma religião, embora em sua casa se faça tudo de forma a não chocar com as regras do islão'; e, nos outros três casos apontados, afinal trata-se de muçulmanas convertidas (antes ou durante o casamento). Cadê, afinal, as tais 'católicas felizes'? Aceita-se em teoria que existam. O PÚBLICO é que enganou os leitores".
Com efeito, o jornal foi infeliz ao referir-se às inexistentes "católicas". E nem era preciso: segundo todas as notícias, o cardeal não se referia a elas, mas sim às "jovens portuguesas".