O voo interior de Antony

Perdeu o medo do ridículo, fez-se amigo de Björk, entende Obama, diz-se conectado com a natureza. Antony tem novo álbum.

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Foi a pergunta final. Qual a sua maior conquista nos últimos anos? Demorou, suspirou, pensou. Depois, pausadamente: "Já não tenho medo do ridículo."

Antony Hegarty, a voz e tudo o resto nos Antony & The Johnsons, convoca visões contraditórias. Diz aquilo que, de tantas vezes repetido, pode parecer banal. Mas quando o ouvimos, percebemos que talvez o equívoco seja nosso, por assim pensarmos.

Não foi o significado intrínseco de palavras e reflexões que desenvolve que se perdeu. Foi o efeito de repetição que nos fez desconfiar delas. Parecem lugares-comuns. Mas quando alguém afirma com naturalidade "as minhas canções estão cheias de fé", duvida-se que seja trivialidade. A transparência emocional que expõe é a sua pujança, a razão de ser de provocar tantos entusiasmos como desconfortos.

Ele diz que já não tem medo do ridículo. Talvez por isso exista uma espécie de beleza tranquila que atravessa o novo álbum "The Crying Light", como se cada canção fosse apenas meia dúzia de notas de piano, algumas orquestrações e uma voz que nos devolve, com simplicidade, a intrincada natureza do mundo.

O segundo álbum, "I Am A Bird Now" (2005), que o revelou ao grande público e com o qual conseguiu o Mercury Prize -o prémio mais credível e relevante da indústria britânica -, era um conjunto de canções confessionais para piano sobre solidão, morte e desordens identitárias. Três anos depois regressa.

Lançou três álbuns em quase dez anos. É pouco.

Depende. Se pensarmos naquilo que é mais comum nesta indústria talvez seja, mas se pensar no meu ritmo, não me parece. Demorei dois anos e meio a gravar este disco, porque tenho sempre a sensação que posso acrescentar mais qualquer coisa. Sou lento, regravo imensas coisas, acho que posso ir sempre mais longe, tenho algo de perfeccionista.

Provoca-lhe ansiedade o acto criativo?

Sim, muito. Agora estou ansioso por tocar estas canções ao vivo porque só aí se completa o ciclo.

E concertos? Às vezes, parece sofrer com eles.

É mais fácil. É uma tremenda liberdade poder fazer aquilo que mais gosto em palco. Mas, é verdade, é sempre uma luta também, no sentido em que nunca se sabe o que vai acontecer. Existe um estado de ansiedade que é latente. Faz parte do processo.

O seu anterior álbum foi um sucesso, alcançou o grande público. Isso também o deixa inquieto?

Não creio que seja assim tão popular. Consigo fazer a minha vida com naturalidade, não tenho que andar com guarda-costas... [risos]. Mas fico surpreendido quando estou a actuar para milhares de pessoas que me querem ouvir. Isso produz uma espécie de maravilhamento sobre mim, mais do que ansiedade.

O êxito não lhe trouxe nada de novo?

Algum dinheiro para investir num apartamento, novas audiências e, talvez, uma maior visibilidade para os "transgenders" como eu. Há alguns anos não sei se seria possível aceitarem-me assim.

Disse que Boy George ou Marc Almond foram essenciais para si na adolescência, no sentido de se reconhecer. Cumpre o mesmo papel hoje?

Eles foram combatentes, na sua forma vulnerável de ser. Sou mais modesto, mas, quem sabe, ser uma voz "transgender" talvez contribua para alguém pensar sobre si próprio de uma forma mais natural.

 

 

Não o diz, mas o efeito do anterior disco mudou a sua vida. Actuou em todo o mundo, colaborou com Björk, Rufus Wainwright, CocoRosie, Laurie Anderson, Bryan Ferry, Nico Muhly ou Joan As Police Woman, cantou com orquestras e participou no filme "Animal Factory" de Steve Buscemi.

Juntou-se em palco com os U2 num concerto de tributo a Leonard Cohen e andou em digressão com "Turning", colaboração multimédia com o artista visual Charles Atlas. Viu colaborações que fez antes de ficar conhecido serem popularizadas, como a produção do álbum "Songs From The Coalmine Canary" (2006), de Little Annie, ou a cooperação, revelada no ano passado, com o amigo Andrew Butler, nos dançantes Hercules and Love Affair. O single "Blind" transformou-se mesmo num êxito transversal, conduzindo a sua voz para pistas de dança de culto ou desfiles de Gucci e Chanel.

Tornou-se numa personalidade sobre a qual todos têm opinião. Um dos chavões mais repetidos acerca das suas canções é que são tristes, depressivas até.

Mas não vale a pena dizer-lhe isso. "Estou sempre a ouvir que as canções são amarguradas, mas não as vejo dessa forma" riposta. "Não penso atingir um estado emocional específico quando as estou a criar, mas para mim estão imersas em esperança."

Algumas das obsessões reveladas nos anteriores discos mantém-se: a morte, o mistério da criação artística ou o respeito pelos que parecem estar do lado errado da vida. Mas desta vez parece ter havido a intenção de conceber uma obra mais unificada, do ponto de vista temático e também musicalmente.

Quase todas as canções respeitam um formato reconhecível, com piano, elementos orquestrais e a sua voz no centro da acção. Existe a entrega e a disponibilidade que se espera de um disco dele, mas curiosamente parece mais controlado e minimal.

Sim, os versos afloram o romantismo exacerbado, o amor supremo, o sagrado, e na capa temos uma foto do bailarino japonês Kazuo Ohno, de 102 anos, como já acontecia no EP "Another World", de Novembro. Tudo parece evocar um universo exterior maior que a vida. Mas é um álbum mais intimista.

No disco anterior entravam Lou Reed, Rufus Wainwright, Boy George ou Devendra Banhart. Neste, há apenas o nova-iorquino Nico Muhly, prodígio de 26 anos que se move entre a clássica e a pop, responsável por dois recomendáveis álbuns ("Speak Volumes" de 2007 e "Mothertongue" de 2008). É ele o autor das orquestrações.

 

 

Não ter convidado ninguém para cantar consigo neste álbum foi uma opção deliberada?

Sim. Não queria mediações. Queria salvaguardar que seria inteiramente meu. Este é o meu álbum mais pessoal e introspectivo, também por isso.

Curiosamente, as letras, são mais viradas para o exterior - a natureza, as paisagens, o ambiente.

Sim, mas também são paisagens emocionais, no sentido em que se trata de encontrar conexões entre aquilo que eu sou, o que faz com que seja assim, de onde venho. Muitas pessoas parecem achar que é um disco mais amargo, menos pessoal, mais abstracto. Não para mim. Nina Simone dizia que cantava para saber quem era. À minha maneira, faço o mesmo. Não é tristeza. É existir, assim. É a minha relação com o mundo natural à volta. Na tradição católica, com a qual cresci, é sugerido que a terra é um lugar transitório para outro sítio. Este disco sou eu a interrogar isso, olhando para o que tenho em comum com o mundo natural, porque todos nós - não apenas as pessoas - somos feitos dos mesmos elementos.

Partiu dessas ideias inicialmente, ou só no final percebeu que a unidade do disco provinha daí?

Só na finalização, quando comecei a dar a ouvir o disco a algumas pessoas e a discorrer sobre ele, é que percebi que havia essa unidade. Gosto da ideia, um pouco romântica, talvez, que a terra é como se fosse uma família, qualquer coisa de uno. Esse pensamento faz-me sentir mais conectado com este mundo, talvez porque me senti, durante anos, separado dele.

Canções como o lamento sobre o estado ambiental do planeta, em "Another world", são das mais directas que alguma vez já fez.

Cresci no final do século XX, uma fase alienante do mundo Ocidental.
Actualmente, talvez as pessoas estejam mais abertas para serem autênticas e honestas com a realidade e isso é bom. Agora sinto que estamos num período em que já não nos podemos escudar na ideia de que não vamos sofrer com aquilo que está a acontecer se não criarmos um mundo mais sustentável. Mas não pretendo fazer nenhuma história disso, quero apenas partilhar as minhas emoções sobre aquilo que me rodeia, porque acredito que todas as coisas neste mundo têm alguma importância, e não apenas as pessoas.

A busca da autenticidade tem movido a música popular nos últimos anos. Beneficiou disso?

Sim, no sentido em que, nos anos 90, me sentia só. À minha volta sentia cinismo. Depois surgiu uma nova geração de pessoas, Devendra Banhart, CocoRosie, Animal Collective, etc, mais conectadas consigo próprias, sinceras, sonhadoras, sem medo do risco. No meu caso, encontrei mais perguntas para as minhas perguntas, mas essa reflexão é positiva e criativa. Conseguir partilhar com elas a mesma visão foi inspirador. Não quer dizer que nos anos 90 não houvesse os mesmos desígnios, mas talvez o colectivo não estivesse preparado para os aceitar.

Barack Obama é também, como muitos defendem, alguém que surge no momento certo para representar desejos de mudança que já estavam presentes no subconsciente colectivo?

Sim, talvez. É como se fosse a manifestação de uma verdade que já existia, mas ninguém ainda conseguira expressar. Na Europa tenderam a olhá-lo como um facto racial, mas não é por aí. Há muitos afro-americanos em lugares de poder. A diferença é que Obama introduziu a noção de esperança, qualquer coisa que já não se via desde os anos 60.

 

 

Antony nasceu em 1971, em Chichester, Sussex, Inglaterra, filho de mãe fotógrafa e pai engenheiro. Miúdo, mudou-se com a família para Amesterdão e, depois, aos 10 anos, San José, na Califórnia, EUA.

Na Universidade de Santa Cruz, onde criou musicais inspirados no imaginário excessivo dos filmes de John Waters, um professor disse-lhe que o único sítio onde poderia vir a ser reconhecido era Nova Iorque. Mudou-se, em 1990, para estudar teatro experimental na Universidade de N.Y. Serviu em cafés, trabalhou em clubes nocturnos, entrou no circuito boémio dos cabarés da cidade e começou a fazer performances de dança com um grupo chamado Blacklips. Em 1995, começou os Johnsons, ainda como trupe de performance, mas as encenações já eram centradas nas cantigas.

Em 1996, contou já por diversas vezes, estava no quarto a ouvir o derradeiro disco dos ingleses Cocteau Twins, "Twinlights", quando as palavras finais do último tema, cantado por Liz Frazer, lhe provocaram um reencontro consigo próprio -"i still care about this planet. I still feel connected to nature and to my dreams. I have my friends and family. I have myself. I still have me", cantava Liz Fraser, palavras que fazem eco no Antony de 2009.

Quando já começava a desesperar, sem respostas para o seu trabalho performativo, recebeu uma bolsa da New York Foundation for the Arts, que acabou por utilizar para gravar, num só dia, o álbum homónimo de estreia, que David Tibet (Current 93), haveria de lançar na sua própria editora, em 2000.

O próximo passo surgiria quando o influente e carismático produtor Hal Willner -na altura a trabalhar com Lou Reed -o convidou para cantar no álbum deste, o tributo a Edgar Allan Poe, "The Raven" (2002), e na digressão que se seguiria.

Desde cedo se percebeu que a Europa estava mais preparada para receber a sua voz do que os EUA. "Não sei porque é que acontece, mas é verdade", reconhece. "Talvez tenha a ver com a abertura das pessoas. Em particular, em Portugal, sempre senti um grande calor para comigo, foi um dos primeiros países onde comecei a actuar regularmente."

Em 2003, no Teatro Ibérico, em Lisboa, ao lado dos Current 93, foi a primeira vez, seguindo-se, no mesmo ano, o concerto "The Raven" de Lou Reed, em Coimbra. No ano seguinte houve o Lux, em Lisboa, com as CocoRosie. Em 2005, de Famalicão ao Porto e Lisboa, implantou-se definitivamente, regressando no ano seguinte, a Braga, com o espectáculo "Turning". A 14 de Maio (Coliseu de Lisboa), 16 (Theatro Circo de Braga) e 18 (Coliseu do Porto) volta para apresentar o novo álbum.

Os americanos só despertaram para ele depois do Mercury em 2005. "Ligam muito a prémios, deve ser por isso", rise. Mas na Europa nem tudo foi cor-derosa. Tem contado que nenhuma editora inglesa queria editar "I Am Bird Now" -revelando-se decisiva, nessa fase, a ajuda de Lou Reed ou Devendra Banhart -antes de ter recebido o prémio e ter vendido mais de meio milhão de exemplares.

Nos últimos tempos, é ao lado de Björk que é muitas vezes visto. Não surpreende. Ambos únicos, desmedidos. Fazem parte da mesma galeria que convoca paixões e irritações na mesma medida -vocalistas ou maneiristas?, interrogamo-nos -porque donos de vozes sobrenaturais e operando, de maneira diferente, sobre as emoções em bruto.

Antony canta em "Volta", o último álbum da islandesa, mas é o anterior "Medulla", obra compulsiva, de músculo, sangue e carne, centrado numa voz e num tempo antes da cultura -o da natureza, justamente -que mais semelhança tem com o trabalho dele. "Ela é uma enorme inspiração", diz. "Livre, corajosa, o corpo cheio de voz." Mas não é a ela que é dedicado o novo longa-duração.

 

 

Que significado atribui às fotos do bailarino Kazuo Ohno (com 102 anos e um dos principais difusores da dança japonesa butô) que figuram na capa do álbum e do EP que o antecedeu?

É o meu mestre, principalmente depois da adolescência. A sua arte é a da perícia, do detalhe, do minimalismo. Quando o vi dançar, pela primeira vez, vi qualquer coisa de admirável e enigmático, mas ao mesmo tempo de criança, de uma grande verdade.

Ele dançou até muito tarde [a sua fase áurea foi entre os 75 e os 95 anos]. Aspira ao mesmo?

Claro... [risos]. Dançou quase até não se mexer e é alguém que me faz pensar que a beleza, que é qualquer coisa de relativo, é mais apaixonante quanto mais próxima está da sua forma natural. Nele, a interiorização das emoções é coisa inteira, íntegra.

As suas canções também têm essa capacidade de captar a emoção nesse estado de pureza?

Não. Talvez. Enfim, não creio, as minhas canções são qualquer coisa de dinâmico, contêm muitas sensações diferentes.

Os arranjos de Nico Muhly conferem subtileza à sua música neste disco, não lhe parece?

Sim. Foi muito bom trabalhar com ele, um verdadeiro processo de colaboração, onde duas pessoas com estilos particulares de trabalhar se ajustam uma à outra. A ideia era criar qualquer coisa de mais contemplativo, sem perder a intensidade.

Optou por criar mais canções de força dramática, mas depois dos Hercules and Love Affair poderia ter feito um disco de dança.

Porque não? Adoro dançar. É sempre um desafio, embora as canções que me emocionam sejam, a maior parte das vezes, aquelas me apetece dançar.

Já disse que os seus concertos eram fisicamente esgotantes mesmo quando não largava o piano.

E é verdade. Mesmo quando a música é vagarosa, o nosso corpo, se estivermos envolvidos naquilo que estamos a ouvir, está sempre a responder a ela.

 

 

Quando se olha para Antony ao vivo pela primeira vez não se espera que um corpo tão desproporcionado tenha uma presença tão delicada. É difícil de descrever uma vulnerabilidade que tanto causa fascínio como incómodo em quem o ouve.

A sua voz tem qualquer coisa de involuntário, indomesticável, nem mulher, nem homem, nem criança, nem adulto, mas tudo isso, transformado em algo elevado, mas emocionalmente orgânico.

Não é coincidência que o centenário Kazuo Ohno surja na capa de "The Crying Light". No butô, o recolhimento emotivo, a procura do silêncio, de uma possível síntese essencial, é o que gera o movimento.

No primeiro disco, ele era o anjo assexual performativo. No segundo, havia uma carga trágica, desmedida, algo teatralizada. Agora Kazuo Ohno sugere também alguma teatralidade, mas é algo mais grotesco, ao mesmo tempo enxuto e interiorizado.

Com ele, fica sempre bem utilizar uma série de binómios que tentam traduzir complexidade -masculino vs feminino, luz vs sombra, singularidade vs universalidade, britânico vs americano. Ele limita-se a dizer que tenta fazer canções autênticas para si próprio, "porque essa é a única forma de outros gostarem delas", diz. "Faço o que toda a gente faz, é simples." Talvez seja isso não ter medo do ridículo.

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