Rui Horta está sempre lá, nesta coisa que parece um concerto dos Micro Audio Waves mas em grande.
Às vezes não sabe bem como, nem em que "frame", e é aí que esta coisa que parece um concerto dos Micro Audio Waves se transforma numa viagem de reconhecimento: uma viagem em que Rui Horta se reconhece (apesar de estar irreconhecível) na electrónica dos Micro Audio Waves, e em que os Micro Audio Waves se reconhecem (apesar de estarem irreconhecíveis) num espectáculo de Rui Horta. Propuseram-lhes que tivessem uma aventura, e eles tiveram: é a aventura mais velha do mundo.
Até se encontrarem em "Zoetrope", o "concerto encenado-realizado-coreografado" que tem estreia quintafeira no Teatro Carlos Alberto, Porto (e que depois vai a Lisboa, Frankfurt e Guimarães em Fevereiro e a Torres Novas em Março), eles viviam em planetas diferentes, e parte dessa estranheza sobreviveu aos seis meses que passaram juntos dentro desta nave espacial em que foram a sítios onde nunca tinham ido. "Já gostava muito do trabalho deles, até já os tinha levado a Montemor-o-Novo [ao Espaço do Tempo, que dirige], mas vimos de mundos completamente diferentes, e por isso a aproximação aqui foi muito lenta: encontrámo-nos muitas vezes, almoçámos muitas vezes, falámos muitas vezes e de repente percebemos que afinal íamos todos para o mesmo sítio", explica Rui Horta ao Ípsilon.
Sozinhos não teriam ido lá parar: "Não queríamos fazer um espectáculo meu, mas também não queríamos fazer um espectáculo dos Micro Audio Waves - queríamos que isto fosse o encontro entre dois mundos. Eu não quis impor-lhes o meu universo, eles não quiseram impor-me o universo deles. É claro que, como eles estão em vantagem numérica, isto é mais deles do que meu, mas quem me conhece vai perceber que eu estou sempre muito presente, às vezes nem sei bem como: o concerto começa tipicamente como eu começaria um espectáculo, com aquilo que eu pediria a um intérprete para fazer, mas depois há alturas em que aquilo é tudo deles e eu não existo a não ser nas imagens que aparecem na parede."
São as mesmas que aparecem no título: o trabalho dos Micro Audio Waves foi compor 12 temas inéditos, o trabalho dele foi dar-lhes um futuro comum, e ele tinha visto o futuro num zootrópio (é aqui que esta viagem de reconhecimento se transforma numa aventura gráfica). "A peça tem uma componente muito sofisticada não só ao nível do vídeo - há uma série de 'clips' - como ao nível de animação multimédia. Tivemos uma equipa de três pessoas a trabalhar só na edição vídeo, nos 'motion graphics' e na programação, desenvolvemos 'software' específico para esta peça. Precisávamos de um conceito para este não ser só mais um concerto dos Micro Audio Waves, e o zootrópio tinha esse lado de movimento perpétuo, constante, em círculo, que nos interessava, porque não há um único momento neste espectáculo em que os ecrãs estejam vazios - é um trabalho titânico", esclarece.
Também tinha o espírito de aventura com que eles estão nisto, que é o espírito de aventura com que estamos no mundo desde que fomos expulsos do Paraíso: "O zootrópio é uma das primeiras máquinas de animar imagens, uma forma primitiva de cinema, e foi inventada naquele período final do século XIX em que andava tudo a tentar perceber o que é o movimento. Também andámos a tentar perceber o que é o movimento para criar as imagens deste espectáculo, e foi uma descoberta tão fascinante que isto acabou por se transformar numa pequena homenagem escondida a todos esses curiosos que inventaram o cinema, a televisão e a Internet - que é aonde esta viagem nos trouxe. Acredito que há mais: acredito que isto que no passado nos levou a descobrir outros continentes no futuro nos há-de levar a descobrir outros planetas." Ele está numa fase em que precisa disso: "Tenho necessidade de experimentar coisas novas: novo circo, encenação, tenho andado por aí. Faz parte da condição humana: estamos programados para sondar, para procurar buracos negros, para nos aventurarmos noutras galáxias. Este espectáculo é sobretudo sobre a nossa curiosidade, que é a mesma do Muybridge [o inventor do zoopraxiscópio] e dos tipos que fizeram o Hubble - se quisermos, é uma antropologia da tecnologia."
Imaginar
O tema impôs-se pelas razões mais óbvias: "Eu escutei-os muito, e nas conversas que tivemos eles estavam constantemente a falar de descoberta, até porque a electrónica que os Micro Audio Waves fazem é inclassificável; por outro lado, tudo isto foi uma descoberta também para mim". E pelas razões menos óbvias: "Tinha estado no Porto e comprei por cinco euros um cavalinho mecânico que achei maravilhoso, na Rua de Cedofeita. Isso foi o 'leit-motiv' que nos levou depois ao cavalo em movimento do Muybridge, que a certa altura reproduzimos no espectáculo", diz.
Agora que faltam uns dias para a estreia, Rui Horta e os Micro Audio Waves sabem exactamente de onde vem este "Zoetrope" mas continuam sem saber exactamente para onde vai: a antestreia em Moscovo serviu para perceber que o que se passa no palco tem milhares de declinações possíveis, "porque cada pessoa vê ali uma coisa", a versão final deve confirmar essa impressão. "Temos feito isto por blocos e a obra vai avançando, mas vamos estar a trabalhar até à estreia. É como criar uma malha larga; à medida que nos aproximamos da estreia, a malha vai ficando cada vez mais estreita, mais apertada, mais refinada, até ser uma plataforma em que nos aguentamos de pé sem grande esforço. Mas apesar de apertada esta malha não nos vincula a uma maneira de ler o espectáculo, que era o que mais queríamos evitar. A vantagem da música é essa: podemos imaginar. Aqui podemos imaginar o que quisermos", sublinha.
Esta é a parte em que olhamos para "Zoetrope" e não vemos Rui Horta: "No final do dia, o que fica disto são as canções, e musicalmente acho que temos os Micro Audio Waves no seu melhor - há grandes momentos de guitarra do Flak, o Carlos [Morgado] faz um trabalho fantástico na criação do ambiente psicológico da peça e a Cláudia Efe deixa as pessoas num estado de estranheza que é muito valioso. O meu trabalho foi muito invisível e muito silencioso; foi um trabalho de esqueleto".
É verdade que não o vemos. Mas podemos imaginar.